Cynthia Rimsky, professora da Universidad Nacional de las Artes, em Buenos Aires. Leciona também na graduação em Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso -  (crédito: Arquivo pessoal)

Cynthia Rimsky, professora da Universidad Nacional de las Artes, em Buenos Aires. Leciona também na graduação em Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso

crédito: Arquivo pessoal

 

Cynthia Rimsky

Tradução de Mariana Sanchez

 

Ortuzio diz que os mercados de pulgas são o divã do psicanalista, com a vantagem de economizar dinheiro. Os objetos dispostos no chão despertam reminiscências que os visitantes percorrem como a um álbum íntimo e social.

 

Famílias cujo passado remonta à história do Chile encontram objetos que, embora desconhecidos, estão gravados na sua memória, que é também a memória do país. Para os emigrantes, a história é uma linha interrompida, e o passeio pelo mercado tem mais a ver com a imaginação do que com a memória.


Num domingo de outubro de 1998, ela achou no mercado de pulgas da avenida Arrieta, em Santiago, um pequeno álbum de 11,5 por 9 centímetros, encapado com um tecido de evidente origem estrangeira. As fotografias mostravam uma família de férias, mediam 6 por 8,5 centímetros e estavam emolduradas com uma aba de cartolina cor de creme cujas bordas internas tinham sido recortadas com uma tesoura de picote. Na primeira página, haviam escrito a lápis grafite algo indecifrável. “Plitvice in Jezersko/ Rimski Vrelec/ Bled.”

 


O sobrenome dela é Rimsky. A diferença na última letra já seria suficiente para deduzir que não se trata da mesma família. No entanto, ao virar a página e ver a primeira fotografia, uma queda d’água experimentou a emoção do viajante quando escolhe um caminho que o levará a um lugar desconhecido. Ignora se seus avós preferiram transformar o passado em algo desconhecido ou se seus pais não demonstraram interesse em conhecê-lo.

 

Sua história familiar sempre foi mais uma pergunta sobre o esquecimento do que uma certeza à qual se agarrar, fragilidade esta que foi transferida para o nome, quando os imigrantes viam como o funcionário chileno da alfândega registrava os Cohen como Kohen, os Levy como Levi, de modo que Rimsky poderia ter sido Rimski.

 

Uma menina de maiô sentada numa pedra rouba a atenção suscitada pela queda d’água no segundo plano.

 

As informações familiares que conseguiu reunir falam de uma bisavó materna em Odessa e de uma avó nascida no navio que a trazia ao Chile. O avô materno vivia em Kiev; aos 14 anos, com seu melhor amigo, alguns irmãos pequenos e o pai, atravessaram a Europa para embarcar rumo à Argentina. Dos que permaneceram na Ucrânia (entre eles, seu bisavô), não conseguiu descobrir nada.

 

O avô paterno vem de um vilarejo chamado Ulanov, situado em algum lugar entre a Moldávia, a Polônia e a Ucrânia. A avó paterna nasceu em Cracóvia, embora depois tenha morado em Varsóvia. Todos emigraram para a América entre 1906 e 1918.

 

O resto é uma confusa dívida imemorial: o cheiro dos vestidos das velhas de olhos claros sentadas em um canto sombreado da piscina do Clube Israelita, observando atrás do véu de seus chapéus os netos chilenos; os tecidos dos vestidos trazidos no barco; o hálito que exalavam as bolsas quando elas procuravam um doce antigo para a neta da amiga. Tudo isso representou desde sua infância aquelas terras inomináveis.

 

A queda d’água e a pedra em primeiro plano, vazia.

 

Ao encontrar o álbum fotográfico no mercado de pulgas, já havia planejado uma viagem à Ucrânia. Como seu interesse não era encontrar parentes ou o nome num túmulo, decidiu que buscar a origem das fotografias poderia ser um destino tão real quanto.

 

A adolescente de maiô levanta os calcanhares do chão e estica os braços para o céu, a bola saiu para fora do quadro e o movimento congela.

 

Sobre a autora

 

Nascida em Santiago no ano de 1962, Cynthia Rimsky desde 2012 vive na Argentina, onde é professora da Universidad Nacional de las Artes, em Buenos Aires.

 

Leciona também na graduação em Escrita Criativa da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, no seu país. Entre os livros publicados, destacam-se“El futuro es un lugar extraño”(2016), prêmio de Melhor obra literária do Conselho Nacional de Cultura do Chile 2017, e“Yomurí”(2022).

 

Livro de estreia da autora em seu país,“Posta-restante” é a primeira obra da chilena publicada no Brasil e sai pela coleção “nos.otras”, da editora mineira Relicário, que já lançou trabalhos de autoras como Sylvia Molloy, Lina Meruane, Carola Saavedra e Mariana Enriquez.

 

“Posta-restante”


De Cynthia Rimsky
Tradução de Mariana Sanchez
Relicário
224 páginas
R$ 50,90