"Venho de um mundo de poucas palavras, tanto orais quanto escritas"

crédito: Renata Sklaski/Divulgação

Rogério Pereira tem duas certidões de nascimento, dois romances e um plano de três décadas: concluir a autointitulada “Trilogia da Ausência”. A estreia na ficção, o romance “Na escuridão, amanhã”, chegou às livrarias em 2013, quando o jornalista e editor chegou aos 40 anos. “Para isso, outros livros foram deixados na gaveta — e lá devem permanecer à espera do esquecimento completo, da boa fogueira que elimina vaidades e desatinos juvenis”, afirma Pereira, fundador e editor do jornal de literatura “Rascunho”.

Segunda parte da trilogia, “Antes do silêncio” foi lançado em 2023 pela Dublinense, que também reeditou o volume inaugural. E, para 2033, está previsto o desfecho com “A longa distância”. “Este plano virou uma espécie de obsessão, uma “assombração” que me acompanha pelos dias. É algo simples e complicado”, admite, em entrevista ao Estado de Minas: “O que mantenho com a sanha de um faminto é escavar as memórias em busca de algo que não sei muito bem o que é.”

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, “Na escuridão, amanhã” ganhou elogios de Raduan Nassar: “Uma das narrativas mais fortes entre as que já li.” A trama familiar aparentemente simples, sobre um casal e os três filhos que saem do campo para a periferia de uma grande cidade, é marcada por silêncios e desilusões. “Deus nunca teve muito tempo para nós”, constata o narrador. “Parto sempre do microcosmo familiar, minha aldeia doméstica, um espaço em que a violência, a miséria e o alcoolismo sempre desenharam um mapa rumo ao inferno cotidiano”, conta Pereira.

A mãe, que “passou parte da infância na escuridão e o resto da vida também”, volta como o objeto da atenção e (um pouco) de afeição em “Antes do silêncio”. Lançado em 2023, o romance traz Pereira ainda mais afiado em uma narrativa seca e impiedosa sobre a agonia e morte da mãe, vítima de câncer. “O corpo caiu de lado: cabeça e braços fora de sincronia. Uma biruta sem aeroporto, sem vento, sem rumo. Toquei-lhe a coxa com firmeza: acorde, mãe, estamos atrasados. Ela me ignorou. Novamente, a morte entrou pela porta da frente, escancarou as cortinas e deitou-se no colchão de pouca espessura”, descreve, na abertura do livro.

Radicado em Curitiba, onde criou e coordena o projeto Paiol Literário e dirigiu a Biblioteca Pública do Paraná, o escritor prefere não nomear a metrópole que abriga – ou desampara – seus personagens. “Venho de um não-lugar: os grotões do Oeste de Santa Catarina. Inclusive, tenho duas certidões de nascimento com duas cidades distintas — algo um tanto inusitado. E, para completar, não nasci em nenhuma destas cidades que, supostamente, abrigam-me num documento que muito diz a respeito das minhas origens”, conta.

Da “Trilogia da ausência” resta apenas um livro. “A longa distância” vem sendo escrito, acredita o autor, desde o suicídio do avô, no início do Plano Collor, na década de 1990. “Parto desta tragédia familiar para fechar a trilogia a partir da frase ‘Aquele homem dependurado pelo pescoço numa árvore é meu avô’. Paralelo a isso, o narrador viaja ao interior, ao lugar onde nascera, para jogar as cinzas de seu pai sobre o túmulo da avó — uma mulher cuja vida foi marcada sempre por uma maldade diabólica. Ou seja, memórias e ficção estarão mais uma vez entremeadas”, antecipa. E, enfim, a história de Rogério Pereira, de sua família e de tantos brasileiros estará completa. Leia, a seguir, a entrevista de Rogério Pereira ao Pensar do Estado de Minas.

Como se dá a fusão entre memória e ficção em “Antes do silêncio”?
Em “Infância”, a dinamarquesa Tove Ditlevsen diz que “A infância é longa e estreita feito um caixão e não dá para escapar dela por conta própria”. Acredito que esta é uma travessia da vida toda, uma espécie de prisão a que todos estamos condenados. A questão é como lidar com o escuro calabouço chamado infância. Eu lido agarrado à literatura — algo impensável na casa onde iniciei a vida escolar: sem banheiro e com um mambembe fogão a lenha. Ao iniciar a construção da minha literatura, sempre tive muito claro que trabalharia entre a ficção e a memória, embaralhando e borrando suas fronteiras. Isso acontece em “Na escuridão, amanhã” e em “Antes do silêncio”. Na verdade, em praticamente todos os meus textos. É uma espécie de jogo com os leitores. O mais importante é se este jogo funciona nos limites do livro, se a verdade ficcional e as memórias constroem um mundo verossímil. Este é o grande desafio que me imponho o tempo todo.

“Às vezes, somente o silêncio escancara o terror diante do mundo”, reflete o narrador do novo romance. Isso também se aplica à literatura? O que podem as palavras diante do terror cotidiano brasileiro?
Venho de um mundo de poucas palavras, tanto orais quanto escritas. Minha mãe sempre foi uma mulher taciturna, recolhida às suas tristezas. Meu pai, um sujeito bruto, envolto pela cólera do alcoolismo. Quando desferia socos e ofensas em nossa direção, sufocávamos o pavor, não tínhamos palavras para combater o inimigo — eu e meus irmãos porque éramos crianças; minha mãe porque era uma mulher submissa, amedrontada e agarrada a uma fé nos desígnios da igreja católica para a preservação do sagrado casamento. Então, era o silêncio que escancarava o terror diante daquele mundo. Mas aos poucos transformei aquele silêncio no silêncio da literatura, da entrelinha, da palavra não dita. E também na possibilidade da palavra escrita de dar voz ao silêncio. A literatura dilata a consciência do humano diante do terror que o cerca. A literatura, como disse Faulkner, é um fósforo aceso no campo à noite: não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.

Por que Curitiba não é nomeada no livro, apenas pela inicial? O que é mais marcante na atividade literária da cidade e do Paraná?
Venho de um não-lugar: os grotões do Oeste de Santa Catarina. Inclusive, tenho duas certidões de nascimento com duas cidades distintas — algo um tanto inusitado. E, para completar, não nasci em nenhuma destas cidades que, supostamente, abrigam-me num documento que muito diz a respeito das minhas origens. E nos meus romances, nenhum personagem tem nome próprio. Ao definir apenas C. como abrigo geográfico para as narrativas, busquei uma coerência e uma maneira de combater a suposta supremacia da cidade grande contra minhas origens agrárias e antiquadas. Curitiba é uma espécie de ilusão, uma cidade para onde viemos arrastados pela miséria. Mas nunca me senti em dívida com esta cidade: é apenas um amontoado de prédios com sua gente, da qual sempre mantive certa distância. Mas considero a cena literária de Curitiba bastante rica. Afinal, temos aqui dois dos principais autores contemporâneos: Dalton Trevisan e Cristovão Tezza. E uma geração intermediária com nomes de talento.

Gostaria de um comentário sobre o seu trabalho como editor de um jornal literário, o “Rascunho”. Quais as transformações ocorridas na literatura brasileira desde o início do jornal, que você fundou em 2000, e como o “Rascunho” espelha essas mudanças em suas páginas?
Em abril próximo, o “Rascunho” completa “inacreditáveis” 24 anos, em 288 edições. O que mais me chama a atenção — e não só em relação a um jornal de literatura — é a velocidade espantosa como alguns fenômenos simplesmente arrastaram tudo a sua frente. Falo, obviamente, das redes sociais, de sua ansiedade, de sua pressa, de seu falso glamour. Inclusive, o “Rascunho” me parece um tanto anacrônico em meio a tantos likes, emojis de olhos apaixonados, dancinhas etc. Somos aquele tiozão que olha tudo isso com certo desprezo e um sorriso sardônico no canto da boca. Obviamente, as redes sociais são poderosas aliadas na divulgação da literatura, mesmo com certa bestial frivolidade a dominá-las. Por outro lado, a facilidade de comunicação rompeu com a centralidade das grandes editoras e do egocêntrico eixo Rio-São Paulo, e potencializou o surgimento de inúmeras micro, pequenas e médias editoras. Hoje, é muito fácil fazer a literatura infiltrar-se pela vida cotidiana do Brasil, mesmo que as marcas do analfabetismo e de uma precária educação deixem um rastro de pessimismo pelo caminho. E, claro, que uma espécie de revolução vem acontecendo com a força (e a conquista de um espaço mais que legítimo) da literatura de autores negros, mulheres e indígenas. Ou seja, as fronteiras da literatura brasileira se dilataram.

O que poderia chamar atenção do editor do Rascunho na linguagem utilizada pelo autor de “Antes do silêncio”?
Talvez eu pareça muito cabotino ao responder a esta pergunta. Mas, quem sabe, o editor do “Rascunho”, aquele ser soterrado por centenas de livros todo mês, se interesse por como se dá o equilíbrio entre ficção e memória neste breve romance, como o autor vai conduzir um assunto corriqueiro (uma mulher morrendo de câncer) sem que os leitores percam o interesse pela narrativa. E, talvez, o uso de certo sarcasmo para encarar o previsível fim de todos nós.

Como avalia o atual momento da literatura brasileira? O que sobra e o que falta?
É um momento ruidoso, caudaloso. Se há muitas micro e pequenas editoras, há obviamente uma multidão de autores em busca de espaço para suas literaturas. As escancaradas janelas do mundo digital passam a impressão de que há muito mais escritores hoje do que há, digamos, 20 anos. Me parece que tudo é muito mais fácil e simples atualmente. Não consegue editora, publica-se por conta e corre atrás dos leitores por meio das redes sociais. E há também as possibilidades das microtiragens (50 exemplares, por exemplo), tiragens sob demanda etc. Tudo isso, atrelado a um mercado consolidado pelas grandes e médias editoras, passa esta forte impressão de uma potência literária brasileira. E fenômenos como “Torto arado”, do Itamar Vieira Junior, para além da inveja medíocre daquele autor armado de tuites maledicentes, são importantes para mostrar que há leitores para a literatura brasileira. Mesmo assim, o que mais faltam são leitores, muitos leitores. E livrarias — estes estranhos espaços dedicados a vender livros! Não esqueçamos: para um país de 214 milhões de habitantes, tiragens de 1 mil exemplares soam um tanto ridículas. Mas esta discussão passa, necessariamente, pela educação. E é longuíssima.

O que já pode antecipar do romance previsto para fechar a “Trilogia da Ausência” em 2033? Já começou a escrever?
De alguma maneira, estou sempre escrevendo. O romance “A longa distância”, que fecha a “Trilogia da Ausência”, vem sendo escrito há algum tempo. Na verdade, acredito que desde o suicídio do meu avô, no início do famigerado Plano Collor, na década de 1990. Eu era um adolescente quando recebi, no jornal onde trabalhava, a notícia e teria de avisar minha mãe que seu pai (meu avô) havia se enforcado. Agora, parto desta tragédia familiar para fechar a trilogia a partir da frase “Aquele homem dependurado pelo pescoço numa árvore é meu avô”. Paralelo a isso, o narrador viaja ao interior, ao lugar onde nascera, para jogar as cinzas de seu pai sobre o túmulo da avó — uma mulher cuja vida foi marcada sempre por uma maldade diabólica. Ou seja, memórias e ficção estarão mais uma vez entremeadas

“Na escuridão, amanhã”
•De Rogério Pereira
•Dublinense
•128 páginas
•R$ 59,90

 

“Antes do silêncio”
•De Rogério Pereira
•Dublinense
• 128 páginas
• R$ 59,90