Samir Machado de Machado

Especial para o EM

Em 1669, o violeiro português Luís Delgado foi julgado pela Inquisição pelo “crime de sodomia” — como a Igreja referia-se então à homossexualidade — cometido por ele na prisão. Após ser humilhado em público num auto de fé, acabou degredado para o Brasil. Para sua sorte, os documentos com sua sentença perderam-se durante a viagem, e, ao chegar à Salvador, ninguém sabendo dizer pelo quê havia sido condenado, pode recomeçar a sua vida numa terra onde a lei portuguesa chegava a muito custo, e a Inquisição só vinha de vez em quando. No Brasil, Delgado se reinventa e casa-se por conveniência com a filha de um negociante de tabaco, do qual herda os negócios. É um casamento de fachada, com muito afeto e nenhum sexo, por falta de interesse de ambos — a esposa Florência, mais cética que devota, registra em diários sua própria falta de desejos, deixando Delgado livre para viver seus amores com outros rapazes.


Em “Sodomita”, Alexandre Vidal Porto parte destes fiapos de História (Luís Delgado teria existido de fato, e tudo o que se sabe dele é o que ficou registrado nos autos da Inquisição) para recompor uma vida, e com ela todas as possibilidades de uma vivência homossexual no Brasil Colônia, cujo fanatismo religioso parece ao mesmo tempo tão distante e tão assustadoramente próximo. O autor é diplomata há 34 anos, e estreou na ficção em 2005 com “Matias na cidade”, publicado pela editora Record. É autor também de “Sérgio Y. vai à América” (2012) e “Cloro” (2018), ambos publicados pela Companhia das Letras.


Com “Sodomita”, Vidal Porto se aventura pela primeira vez no romance histórico. Conhecido pelo trabalho preciso de linguagem, é também na linguagem que seu livro mais se destaca: o narrador emula o português seiscentista dos inquisidores no vocabulário e no modo de se expressar, mas o faz com a fluidez de uma sintaxe moderna que o torna acessível ao leitor. O resultado é um pastiche do português antigo que flui criando uma janela para o passado, nos possibilitando ver como seria viver em uma terra sem estado laico, onde os dogmas da religião de alguns eram impostos sobre todos, a tal ponto que parecia impossível sequer expressar-se fora deles. Mas Vidal Porto se utiliza dessa linguagem, ao mesmo tempo culta e violenta, para subvertê-la através de uma refinada ironia, pois quanto mais o narrador carrega no julgamento de valor, com mais atenção seu olhar detalha aqueles “pensamentos e tocamentos torpes” de Delgado, que “com seu membro viril desonesto” penetrava o “vaso traseiro” de seus amantes, “fazendo por detrás como se faz com a mulher pela frente”.


É um curioso paradoxo que, ao tentar suprimir existências, aqueles responsáveis por perseguir um determinado grupo tenham sido justamente os que mais preservaram sua memória, em seus relatórios de palavreado erudito. Ao mesmo tempo, isso não raro acabou limitando nossa visão do passado a somente o que era registrado pelo perseguidor, esquecendo que, para além daqueles que eram presos, havia uma gama de vivências, pautadas pela aceitação e tolerância, que passaram desapercebidas.


Quando Florência, a esposa de Luís Delgado, descobre os casos do marido com outros homens, ela demonstra um grau de aceitação que poderia soar avançado para a época, se não houvesse exemplos de tolerância semelhante ao longo da História. Afinal, como diz com sabedoria a escrava Campina, “na nação Quimbanda, e também na do Manicongo e dos Azande, a somitigaria não era crime nem pecado, sendo ofício de curandeiro e médico (...) pois é a vontade da natureza e das entidades sagradas, que os querem e os criam assim”.


É um segredo mal guardado que romances históricos, por sua natureza, tem tanto mais a dizer sobre o tempo em que são escritos quanto do passado que retratam, até pelo próprio recorte escolhido pelo autor. Em tempos onde o discurso de ódio contra minorias é aceito com naturalidade, teimar em existir se torna, por si só, um ato de resistência, e ser feliz existindo, uma subversão. Michel Foucault já disse certa vez que o intolerável “não é a busca pelo prazer, é acordar feliz no dia seguinte”. Nesse sentido um final feliz, neste tipo de romance, é sempre um ato político. E, sem entregar muito, é quando os personagens assumem suas vozes em primeira pessoa e podem enfim expressarem-se em seus próprios termos, livres da linguagem do dogmatismo religioso, que Vidal Porto nos mostra o quanto as palavras e o modo com que expressamos algo é não apenas uma forma de resistência, mas também de libertação.

*Samir Machado de Machado é escritor, autor de livros como “Homens elegantes” (2016) e “O crime do bom nazista” (2023)

“Sodomita”

De Alexandre Vidal Porto
Companhia das Letras
160 páginas
R$ 69,90

Entrevista/ Alexandre Vidal Porto (autor de “Sodomita”)

Qual o ponto de partida de “Sodomita”?
Foi saber que as pessoas que hoje chamamos de LGBT+ foram cruelmente perseguidas pela Inquisição durante o período colonial no Brasil. Muitas delas foram presas, torturadas, degredadas por sua orientação sexual e identidade de gênero. Fiquei curioso em saber mais sobre esses homens e mulheres cujas vidas foram destruídas pela intolerância religiosa durante a nossa colonização. Quem eram? O que faziam? A quem amavam? O que deixaram para nós? O livro partiu dessas perguntas.

Como foram realizadas as pesquisas para o livro?
Tomei conhecimento do personagem principal, Luiz Delgado, um violeiro português degredado para o Brasil pelo crime de sodomia, por intermédio dos artigos do professor Luíz Mott sobre o período. Colhi elementos de sua vida nos depoimentos das testemunhas nos processos da inquisição contra ele. Também pesquisei mapas e livros sobre a história da vida cotidiana na Bahia seiscentista e relatos de viajantes estrangeiros às colônias portuguesas. Os personagens centrais – Delgado, Florência, Doroteu, Miguel – todos existiram de fato. A invenção ficou para suas peripécias, sentimentos e motivações e para alguns personagens secundários, totalmente ficcionais.

Como encontrou o tom da linguagem utilizada? Quais escritos utilizou como referência até encontrar esse tom?
O tom da linguagem é uma espécie de brincadeira. Procurei imitar o português falado no século 17, mas com a preocupação de mantê-lo compreensível para o leitor atual. As referências iniciais foram documentos e depoimentos de época, transcritos nas pesquisas do Luiz Mott, mas, também, um pouco de termos e construções do sertão nordestino, elementos de linguagem diplomática, de linguagem jurídica, espanholismos, palavras inventadas, tudo isso como “colagem” para transmitir um tom falsamente arcaico, mas acessível.

Em uma das passagens, o narrador se refere à “contaminação sodomítica” e à “ira divina” destinada aos personagens do mesmo sexo que mantêm relações. Como a homossexualidade era vista na época em que se passa o livro? O que mudou e o que permanece?
O sistema jurídico da época era baseado em dogmas religiosos, e os atos homossexuais eram considerados pecados e sancionados como crimes. As penas iam de prisão, tortura e degredo à morte na fogueira. Em que pesem os avanços na proteção das minorias sexuais no Brasil nos últimos anos, fiquei chocado com a semelhança entre a linguagem dos inquisidores portugueses no século 17, que queimavam homossexuais na fogueira, e os argumentos utilizados por parlamentares brasileiros hoje para tentar restringir no Congresso Nacional os direitos da comunidade LGBT+.

Como a história de um personagem do século 17 pode ecoar nos dias de hoje?
A perseguição que Delgado e outros LGBT+ sofreram no Brasil colonial continua realidade em vários países do mundo. Hoje, 65 países criminalizam atos homossexuais. Em 12 deles há pena de morte para o crime de sodomia. Apesar do entendimento na cultura ocidental de que os LGBT+ são parte da diversidade humana e devem ser protegidos, o estigma contra as minorias sexuais continua em muitas partes do mundo. Por outro lado, a força e a indestrutibilidade do desejo também seguem tão potentes hoje quanto no tempo de Luiz Delgado. A grande diferença é que hoje sabemos que um mundo melhor para os LGBT+ é possível.

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