A escritora Lilia Guerra -  (crédito: Thais Cristina)

A escritora Lilia Guerra

crédito: Thais Cristina

Bruno Inácio
Especial para o EM

“O céu para os bastardos” (Todavia), da ´paulistana Lilia Guerra, é um livro tão perspicaz quanto necessário. A narrativa acompanha Sá Narinha, empregada doméstica que vive num lugar chamado Fim-do-Mundo e trabalha numa casa de classe média, bem distante dali. Tem um olhar atento, sensível e crítico ao cotidiano e traduz, como poucas personagens da literatura recente, um Brasil desigual e demagogo.
Tem uma vida repleta de movimento, com vizinhos que se gostam e se protegem, animais que perambulam pelas ruas e uma patroa que sintetiza muito bem a arrogância e os preconceitos da classe média brasileira. Também carrega a tristeza de ter o filho preso após tentar assassinar a esposa por conta de uma violenta crise de ciúmes.


Com capítulos curtos e uma rara habilidade para construir cenas e elaborar diálogos verossímeis, Lilia Guerra, que também é auxiliar de enfermagem em São Paulo, constrói uma narrativa poderosa, com personagens e tramas que “vêm meter o pé na porta do cenário literário brasileiro”, como disse o escritor José Falero na quarta capa do livro.


A autora conhece muito bem espaços como Fim-do-Mundo, sabe o que é ficar horas no transporte público para chegar ao trabalho e, principalmente, acredita que a literatura pode contribuir para uma mudança social. “O livro é o instrumento de que disponho para tornar públicas, questões que, aparentemente, são do conhecimento de todos. À medida em que as abordo, percebo que não. Não são. Pretendo que fiquem registradas, de modo que sirvam sempre como ferramenta de discussão, debate”, afirmou a escritora ao Estado de Minas.


Em meio ao sucesso de “O céu para os bastardos”, Lilia Guerra tem mais um motivo para comemorar: ficou entre as 61 escritoras selecionadas pelo Prêmio Carolina Maria de Jesus. “Quando eu soube do Prêmio através da imprensa, fiquei muito, muito empolgada. Tudo o que envolve ou diz respeito à Carolina me interessa e comove. Eu quis participar desde o início, queria poder homenageá-la, nem que fosse com minha inscrição”, ressaltou. Leia, a seguir, a entrevista de Lilia Guerra ao Pensar.

Em “O céu para os bastardos”, diversos personagens aparecem, fazem suas contribuições à narrativa e, de certa forma, compartilham um pouco de suas vivências. Essas “visitas” aproximam os leitores da comunidade em que a história se passa e dão a sensação de constante movimento e, até mesmo, imprevisibilidade. Seu processo de escrita também foi repleto de visitas e movimento?
Sim! Sempre! Acho que imprevisibilidade é uma palavra que se encaixa perfeitamente no meu processo de escrita. Eu não costumo esboçar a história antes de desenvolvê-la. Ao menos, não em sua totalidade. Geralmente, trabalho nos arredores de um lugar central, esse sim como uma base. Em “O céu para os bastardos”, o conflito que Sá Narinha vive se destaca, mas as coisas continuam acontecendo. Ela pode ser considerada protagonista naquele momento, mas, na verdade, não considero nenhum personagem secundário ou de apoio. Eu sempre imagino uma entrevista com cada um deles. E sempre pretendo desenvolver situações com todos eles. Movimentá-los. Sá Narinha pensa demais. Demais. Retorna ao passado. Recorre às recordações. E o pensamento é imprevisível. Uma imagem provoca lembranças. Uma voz. Um nome. Procurei assistir às memórias de Sá Nara. E movimentá-las. Assim como o cotidiano que acontece à sua volta. É tudo especial e importante.

Como surgiu a ideia para o romance? Quando percebeu que era o momento de publicá-lo?
Bem, Sá Narinha forneceu seu depoimento em “Rua do larguinho” (Patuá), romance publicado em 2018. O formato de “Rua do Larguinho” consiste na trama central entremeada por contos que abordam temáticas femininas. Sá Nara, na ocasião, falou um pouco sobre as dificuldades que enfrentava no transporte público. Valdumira, sua irmã, também aparece no “Rua” e Sá Narinha é quem narra um pouco de sua vida. Ela também serve como apoio para que Risoneide, uma moça da vizinhança, compartilhe suas experiências. Achei Sá Nara uma boa ouvinte, excelente observadora. Pensei que, narrando também se sairia bem. Queria que contasse outras histórias, mas que também falasse de sua própria vida.
Sobre o momento de publicar o livro, o texto estava em andamento quando o apresentei ao meu editor, Leandro Sarmatz. Ajustamos uma data provável, é claro, um ajuste flexível, mas necessário para que eu avançasse.

Inclusive, como você observou, há personagens no livro que também aparecem em outras obras suas. Esse “universo compartilhado” presente em sua ficção foi planejado ou surgiu naturalmente?
Não foi planejado. Aconteceu naturalmente. Em “Perifobia” (Patuá), meu primeiro livro de contos, publicado em 2014, senti necessidade de trabalhar com mais profundidade as vivências de alguns personagens. Percebi que quase todos habitavam e frequentavam o mesmo ambiente. E que, nesse caso, seria natural que se encontrassem. Ou se esbarrassem, apenas. Mas gosto de imaginar a reação de um leitor ao notar esses cruzamentos. E gosto mais ainda de inserir chaves dentro dos textos. Leitores atentos as encontrarão ao longo dos anos. Deixei muitas dessas chaves espalhadas pelos livros. Gosto de pensar que, mesmo quando um dia eu não puder mais escrever, um leitor poderá se surpreender com uma informação nova, aberta por uma delas.


“O céu para os bastardos” dá voz à personagens que vivem às margens e evidencia as desigualdades do país. Acredita que a literatura pode contribuir para uma mudança social no Brasil? De que forma?
Eu acredito sim. Preciso acreditar. O livro é o instrumento de que disponho para tornar públicas, questões que, aparentemente, são do conhecimento de todos. À medida em que as abordo, percebo que não. Não são. Pretendo que fiquem registradas, de modo que sirvam sempre como ferramenta de discussão, debate. Se bem que, sonho mesmo com o dia em que se tornarão estranhas, incríveis (no que diz respeito à injustiça e desigualdade, ao menos). Acho que nem todo livro, mas sim os que eu escrevo, pode (não sei se deve) contribuir para uma mudança social. E, ainda que muitos escritores, leitores ou críticos digam o contrário, eu entendo que são janelas de onde eu posso acenar.
Há muitas obras escritas por grandes autores contando histórias de personagens construídos livremente. Personagens que escolhem suas trilhas. Isso é ótimo. Eu não posso escrever assim. Ainda não posso. Não faria sentido. Se o estilo, a técnica, o formato ou o gênero do que produzo é questionável, espero sinceramente que outros escritos sejam considerados, então. E que ocupem seus lugares.


Você está entre as 61 escritoras selecionadas pelo Prêmio Carolina Maria de Jesus. O que isso representa? Pode falar um pouco sobre esse seu novo projeto?
Quando eu soube do Prêmio pela imprensa, fiquei muito, muito empolgada. Tudo o que envolve ou diz respeito à Carolina me interessa e comove. Eu quis participar desde o início, queria poder homenageá-la, nem que fosse com minha inscrição. Eu tinha uma ideia e alguns contos iniciados. No dia em que comecei a montar o arquivo, estava especialmente afetada pela letra de um samba que eu vinha ouvindo com frequência e que destaca uma expressão que minha vó usava muito. “Isso é cavaco do ofício”. A frase também está na canção “Artifício”, interpretada por Roberto Ribeiro e Clara Nunes, composta por Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro. O samba é sempre uma inspiração para o meu processo. É matéria-prima, alimento, água, ar. Assim nasceu a compilação “Cavaco do ofício”, inscrita no Prêmio. E estar entre as 61 selecionadas me emocionou muito.

A música, aliás, é bastante presente no seu trabalho. É uma influência tão importante quanto a própria literatura?
Música é literatura para mim. Digo isso, pois, iniciei minha vida de leitora devorando encartes e capas de LPs. Fichas técnicas. As introduções escritas por produtores, convidados ou pelo próprio artista, que se assemelham aos prefácios e textos de orelha. Estou falando sobre o objeto disco, muito rico em imagens e informações, mas as letras das canções impressas são poesias, contos, crônicas, novelas e romances. É o tipo de literatura que alcança pessoas não alfabetizadas como era minha vó. E que pode até ser produzida por quem não domina as letras. Inúmeros compositores geniais têm pouca ou nenhuma escolaridade. Essencialmente, o samba foi sempre uma ferramenta de apoio à formação do meu caráter, para a minha educação. Há preceitos que aprendi com o samba, com o rap. Mensagens decalcadas em mim, que carrego pela vida. Então, posso dizer que, sim! Tudo o que escrevo é fortemente afetado pela música. Por meus compositores e intérpretes favoritos. Meu processo criativo, certamente, começou com a música.

Um trecho de "O céu para os bastardos" diz que "para muita gente, felicidade é recolher os meninos de tardezinha, para banhar e esperar a janta. É ver qualquer coisinha na televisão. Nem todo mundo vai ser o artista que está na TV. Mas todo mundo devia poder escolher sua verdura. Comer seu peixinho, uma vez ou outra. Sua carne ou o que preferir. Ter sossego para ouvir música, apreciar seu esporte favorito. Tocar um instrumento no dia de folga". E para você? O que é felicidade?
Seguindo esse pensamento de Sá Narinha, posso dizer que, para mim, a felicidade se constrói coletivamente. Que graça tem ser feliz sem companhia? Quando caminho pelas ruas do meu bairro, da minha cidade, muita coisa que observo em minhas andanças me entristece. Eu fico planejando que as caçambas de lixo desapareçam, que as carcaças de carro abandonadas sejam recolhidas. Que os muros feios e sujos sejam pintados, grafitados, coloridos. Que os fios embaraçados se desenrolem. Que as calçadas se padronizem, que os acessos funcionem para as mais variadas necessidades. Que todas as pessoas que ficam ao relento tenham casa, que possam se alimentar de comida e arte. Me agarro às alegrias e as anoto mentalmente também. Aos sorrisos. Aos amores que percebo. Felicidade, para mim, só pode ser coletiva. Felicidade é escola, biblioteca, hospital e posto de saúde. Crianças com a carteira de vacinação em dia. É ônibus que sai da linha no horário, com lugar pra todo mundo se sentar. É praça arborizada, com brinquedos para as crianças. Isso, em todos os lugares, não importa se perto ou longe do centro da cidade. É um parque, um teatro, uma quadra de esportes, cinemas populares. Escadas rolantes e elevadores em todas as estações de trem me fariam especialmente feliz. Restaurantes populares, população empregada, educação, saúde, lazer e cultura para todos. Felicidade, pra mim, é o que pode ser feito pelo povo sendo feito. E o que não pode ser mudado efetivamente, sendo melhorado, adaptado. Eu penso demais. Demais. 

“O céu para os bastardos”

De Lilia Guerra
Todavia
176 páginas
R$ 54,90

Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). Escreve sobre literatura no Jornal Rascunho e na São Paulo Review.

Trechos

(De “O céu para os bastardos”, de Lilia Guerra)

“Soube de um assalto na linha 2034, às cinco e meia da manhã. Diz que estava um dia frio, garoento. Olhe que pular da cama às quatro da madrugada, sair tiritando e ser roubado, no ônibus ou no caminho, pelos pilotos da covardia que cercam sem dó é solvente. Metem marra nas vítimas que ainda vão enfrentar oito, doze horas de turno. Na limpeza. Em chão de fábrica. Varrendo rua. Gente que não tem como se recompor ou como suspender os compromissos do dia para se refazer. Nem tem seguro para acionar. Os inconsequentes não analisam o estrago. Bolam as correrias para garantir ostentação, mas o dano não é apenas material. Encurralaram uma moradora no larguinho. Subia sozinha e foi atacada por dois enviados. O garupa tomou a bolsa e a empurrou. Uma dona que também ia para o trabalho encontrou a coitada caída. Não conseguia se levantar. Apavorada, repetia que não podia se atrasar, que era nova no emprego. Levaram o uniforme, o vale-transporte. Imagino o quanto se prejudicou. Na maioria das vezes, o empregador não quer saber da explicação. Quer o ponto batido no horário. Quem contrata, espera solução e não problema. D. Gerda, minha patroa, me esfregou isso na cara, um dia.”