PChegada à Rua Guaicurus é o clímax da rota, que percorre quatro quilômetros; psseio começa na estátua que homenageia Roberto Drummond, na Savassi -  (crédito: Ramon Lisboa / Gladyston Rodrigues )

PChegada à Rua Guaicurus é o clímax da rota, que percorre quatro quilômetros; psseio começa na estátua que homenageia Roberto Drummond, na Savassi

crédito: Ramon Lisboa / Gladyston Rodrigues


Não estranhe se encontrar neste sábado um grupo de pessoas pelas ruas da cidade carregando fotos antigas e exemplares de "Hilda Furacão", clássico do escritor Roberto Drummond (1933-2002). São os integrantes de uma caminhada literária criada pelo jornalista e escritor Rafael Sette Câmara e pela jornalista Luísa Dalcin, que percorre todo mês os pontos marcantes citados no livro lançado em 1991 e também da vida do autor. O passeio começa 9h e percorre quatro quilômetros.

"A caminhada começa na Savassi, em frente à estátua do Roberto Drummond. Segue até o Minas Tênis Clube, desce a Rua da Bahia, passa em frente ao Museu da Moda, chega na Praça Sete, na Rua Guaicurus e termina no Café Palhares", detalha Câmara. Em cada parada, ele mescla leituras de parte dos livros, exibições de fotos históricas e de trechos da série produzida pela Globo em 1998 com explicações sobre os pontos da cidade. "São sempre de 12 a 15 pessoas. Dessas, uma ou duas leram o livro, três ou quatro viram a série, a maioria é um público que sabe da história, mora aqui e se interessou pela personagem de algum modo. Depois da caminhada, várias pessoas me mandam mensagens falando que compraram o livro e estão lendo", comemora o guia.

Quem perdeu o passeio deste sábado pode ficar de olho na página do Instagram do Movimento à Pé (www.instagram.com/caminhadasbh/), onde o casal divulga as caminhadas e a venda de ingressos, a partir de R$ 90. Além de Hilda Furacão, outro percurso, batizado de Páginas Viradas, é inspirado pela literatura, percorrendo pontos da vida de nomes como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Fernando Sabino e Henriqueta Lisboa.

Mapa da caminhada sobre Hilda Furacão

Mapa da caminhada sobre Hilda Furacão

:Paulinho Miranda

Entrevista com Rafael Sette Câmara
Jornalista, escritor e guia da caminhada Hilda Furacão

Por quais pontos da história da Hilda Furacão a caminhada passa?

Ela começa pela Savassi, porque o Roberto Drummond morou bastante tempo por ali. Ele perambulava por lá, chamava isso de "savassear", ia nas livrarias ver se os livros dele estavam bem expostos, se estavam vendendo bem. De lá vamos para o Minas Tênis Clube, onde existia um baile. Depois seguimos para o Museu da Moda, que na época era o prédio do Conselho Deliberativo de BH, o equivalente à Câmara dos Vereadores. Em "Hilda Furacão", o Roberto narra lá o momento em que os vereadores vão fazer uma votação para saber se a Hilda vai ou não ser expulsa de Belo Horizonte. Passamos pela Rua Carijós, que é onde ficava o jornal em que o Roberto trabalhava na época, o "Folha de Minas", pela Rua Guaicurus e terminamos no Café Palhares.

O que mais chama a atenção dos participantes na caminhada da Hilda Furacão? É o momento que chega na Rua Guaicurus?

Todo mundo fica muito ansioso pela entrada na Rua Guaicurus. É a maior zona de prostituição do Brasil, são quatro, cinco mil profissionais do sexo lá até hoje é uma coisa que está muito ligada à aura de Belo Horizonte. Desse nosso conservadorismo e de ter, ao mesmo tempo, uma zona de prostituição há tantas décadas do centro. É uma coisa que todo mundo tem uma certa curiosidade, e eu vou alimentando isso na caminhada. Ao longo de todo o trajeto eu vou lendo trechos do livro, então eu leio quatro ou cinco trechos do livro, inclusive o do exorcismo, quando o frei Malthus tenta exorcizar a Hilda Furacão. Só que é uma rua normal, como todas as ruas do Centro, então desmistifica um pouco também. Além disso, fazemos uma experiência mais imersiva, temos um bolinho de kaol no fim, que é do Café Palhares, citado quase 20 vezes no livro, tem um chope, levamos a geleia de jabuticaba, que o frei Malthus vai se lambuzando com ela, toda vez que ele é tentado, que ele pensa na Hilda.

Como é sua relação com a obra de Roberto Drummond?

Ele é tão importante para mim que é uma das três grandes influências que eu tenho no meu livro de estreia, "Dos que vão morrer, aos mortos", que lancei no fim do ano passado. Eu tentei fazer algo mais ou menos parecido com ele, como no caso dele, que o narrador se chama Roberto Drummond, no meu livro, o narrador também tem o meu nome. Então eu tentei beber um pouquinho nessa fonte. Eu até conheci pessoalmente o Roberto embora, não conte, porque ele morreu em 2002, eu o conheci criança, de ver ele passeando, era muito frequente ver o Roberto na rua, ele atendia todo mundo.É a primeira pessoa que eu vi quando eu era criança e alguém falou: "ele ali é um escritor". E lógico, a gente se enche de admiração. Eu me enchi de admiração, embora só tenha lido "Hilda Furacão" depois, porque eu não tinha idade naquela época para isso.

 
TRECHO DE "HILDA FURACÃO"

Quando o Santo atravessa a fronteira da Guaicurus com São Paulo e penetra no território que uns dizem encantado, onde reina Hilda Furacão, da ponta de lá da rua vem vindo uma multidão silenciosa, compacta, escura, que não carrega tochas acesas; soldados da Polícia Militar, armados de cassetetes, revólveres e bombas de gás lacrimogêneo avançam apressadamente, deixam a esquina de São Paulo onde estavam entrincheirados; soam sirenes, troveja no céu cada vez mais escuro, e os soldados, ajudados por prestimosos guardas-civis, isolam uma área em frente ao Montanhês Dancing e ao Maravilhoso Hotel e criam um pequeno território neutro, uma terra de ninguém no que prometia ser um campo de batalha.

A alguns passos do cordão de soldados e guardas civis, mas dentro da terra de ninguém, o Santo para; volta-se para a multidão que carrega tochas acesas e grita "Deus sim, Diabo não", e faz um gesto, logo atendido, pedindo silêncio; avança mais três passos, o que leva Dona Loló Ventura e o irmão leigo a darem dois pulinhos, ergue o crucifixo na direção do Montanhês Dancing e do Maravilhoso Hotel; luta contra a vontade de comer geleia de jabuticaba e grita com uma voz que, sendo de Santo, tem um tom musical (não fosse ele um barítono de chuveiro):

— Eu te exorcizo, Satanás!

É então que Hilda Furacão vem descendo a escada do Maravilhoso Hotel e caminha na direção do Santo.

(...)

— Eu a exorcizo, pecadora! Você é a enviada do demônio para tentar os homens aqui na terra.


Ela retruca: — E se foi Deus, Frei Malthus, quem me mandou à terra para fazer um relatório sobre o que se passa no coração dos homens?