O escritor noruegês Karl Ove Knausgard -  (crédito: Federico Gambarini/AFP)

O escritor noruegês Karl Ove Knausgard

crédito: Federico Gambarini/AFP

O pensamento repentino de que os meninos estavam dormindo na casa às minhas costas enquanto a escuridão caía sobre o mar foi tão pacífico e tão amistoso que não o deixei ir embora, mas tentei segurá-lo e localizar aquilo de bom que nele havia.


Tínhamos armado a rede horas antes, então as mãos deles provavelmente cheiravam a sal, pensei. Não havia a menor chance de que as houvessem lavado sem que eu tivesse pedido. Eles gostavam de fazer a transição entre a vigília e o sono da forma mais discreta possível; e assim tiravam as roupas do corpo, deitavam-se sob o edredom e fechavam os olhos sem nem ao menos apagar a luz, a não ser que eu apresentasse as minhas exigências de que escovassem os dentes, lavassem o rosto e arrumassem as roupas na cadeira.

Naquela tarde eu não havia dito nada, e os dois haviam simplesmente deslizado, cada um para a sua cama, como bichos de pernas compridas e pele lisa. Mas não foi nisso que tinha sido bom pensar.
Tinha sido a ideia de que a escuridão que caía era independente deles. De que dormiam enquanto a luz abandonava as árvores e o chão da floresta do outro lado dos quartos para brilhar de leve no céu por mais uma hora antes de também escurecer e fazer com que a única luz no panorama fossem os reflexos fantasmagóricos do luar na baía.


Sim, tinha sido isso.


A ideia de que nada jamais cessava, de que tudo simplesmente continuava para sempre, de que o dia transformava-se em noite, a noite em dia, o verão transformava-se em outono, o outono em inverno, de que os anos seguiam-se uns aos outros, e de que eles se encontravam no meio disso tudo naquele exato momento, enquanto dormiam um sono pesado nas camas. Como se o mundo fosse um lugar que visitavam. As luzes vermelhas no alto do mastro cintilavam na escuridão que pairava acima das árvores na outra margem. Mais abaixo havia as luzes das cabanas. Tomei um gole de vinho e balancei a garrafa de leve, porque estava demasiado escuro para ver quanto ainda restava. Pouco menos da metade.

Quando eu era pequeno, julho era o meu mês favorito. Não parecia nada estranho, afinal esse é o mês mais infantil e o mais simples em razão dos dias longos e repletos de luz e calor. Na minha adolescência passei a gostar do outono, da escuridão e da chuva, talvez porque acrescentassem à vida uma seriedade que me parecia romântica e da qual eu podia me vingar. A infância era a época de correr de um lado para o outro e simplesmente existir, enquanto a juventude era a descoberta da estranha doçura da morte.

E então eu passei a gostar mais de agosto. Talvez nem fosse estranho; eu estava no meio da vida, no lugar do tempo em que as coisas se completam, na lenta e progressiva estagnação de plenitude, antes que tudo começasse a se esvaziar e a esmorecer numa decadência igualmente vagarosa.


Ah, agosto, com tua escuridão e teu calor, tuas ameixas doces e tua grama seca! Ah, agosto, com os teus pássaros marcados para morrer e tuas vespas loucas por açúcar!

SOBRE O AUTOR

Karl Ove Knausgard nasceu em 1968 em Oslo, na Noruega, e é considerado um dos autores mais importantes da literatura contemporânea mundial. “Estrela da manhã” é o primeiro romance de Knausgard desde a consagrada série autobiográfica “Minha Luta”. Desta vez, o norueguês narra as vidas de nove pessoas durante dois dias de agosto, enquanto uma estrela gigantesca surge
no céu.

“Estrela da manhã”

De Karl Ove Knausgard
Tradução de Guilherme da Silva Braga
Companhia das Letras
656 páginas
R$ 156,90
Nas livrarias a partir de fevereiro