Adèle Rosenfeld, nascida em 1986 na cidade francesa de Béziers: finalista do Prêmio Goncourt -  (crédito: Divugação)

Adèle Rosenfeld, nascida em 1986 na cidade francesa de Béziers: finalista do Prêmio Goncourt

crédito: Divugação

Um livro pode ser perturbador e, ao mesmo tempo, superficial? Foram mais de 30 dias para processar a pergunta por mim levantada após a leitura de “Águas-vivas não têm ouvidos” (Fósforo), primeiro romance da francesa Adèle Rosenfeld, nascida em 1986 e finalista em 2022 do prestigiado Prêmio Goncourt. Com aproximações ao surreal, a narrativa se centra em personagem surda unilateral que perde a audição do outro ouvido e precisa encarar a decisão de fazer um implante coclear – inserção de prótese eletrônica – para voltar a ouvir.

Navegar nas águas do silêncio; estudar a geografia de lábios e bocas; treinar a fala para não elevar os decibéis e evitar ferir interlocutores; frequentemente não entender o que algumas pessoas dizem; confundir palavras sonoramente parecidas. Desde criança, Louise F. “navega nas águas movediças do silêncio”. Personagem-protagonista-narradora, agora adulta na faixa dos 20 anos, ela sobreviveu como ouvinte, mas sempre enfrentou dificuldades inerentes à condição de surda oralizada (aquela que fala a língua de seu país, não necessitando da linguagem dos sinais).

Usando desde os cinco anos um aparelho auditivo, Louise habita “uma margem invisível”, nas palavras do fonoaudiólogo que a atende. Um dia, conta a personagem, “minha audição ruiu, sem pistas”. Na avaliação, a médica otorrino anuncia a entrada no processo que resultará na surdez total e a necessidade do implante, feito por meio de cirurgia, a ser inserido na porção do ouvido interno assemelhada a um caracol. O choque a desestabiliza. As páginas ganham personagens imaginários: um soldado inglês, um cão e uma botânica, que a ajudará a criar um herbário de sons – linda ideia, pouco desenvolvida.

A escrita é fluida, os 80 capítulos são curtos e recebem apenas números, a apresentação do universo da surdez mostra-se coerente e se percebe uma ampla pesquisa, tanto de temas médicos como de textos literários. No entanto, falta à narrativa maior complexidade. As tensões são resolvidas de maneira muito rápida. Ainda que a dor poreje, a difícil conexão com o real seja agravada pela incompreensão dos outros – os chefes realocam Louise para trabalhar em uma sala pouco arejada, onde quase não terá interação com o público –, a escrita de Rosenfeld não apresenta trama coerente em intensidade com a imensa angústia anunciada da protagonista.

Pode ter sido proposital a decisão de suavizar a narrativa para evitar um dramalhão. Pessoas leitoras sem a deficiência poderão sentir profunda empatia pela tristeza poética emanada do relato, pouco afeito a explorar situações bem-humoradas que costumam ocorrer nas interações entre surdos oralizados e ouvintes normais. Um discurso literário muito diferente, por exemplo, de “A corneta”, de Leonora Carrington, resenhado nesta edição por Stefania Chiarelli. Centrado em uma surda idosa, carregado nas tintas do hilário, o romance da artista visual surrealista tece uma força emancipadora da dupla condição considerada negativa: a velhice e a surdez.

Em “Águas-vivas não têm ouvidos” é como se a escrita reproduzisse uma trapaça tipificada: pessoas surdas oralizadas costumam se esconder, fazem-se de normais, têm medo da “fragilidade de ser vista”, como diz Louise. Ao evitar o reconhecimento da grande fratura, suavizam conflitos e dores inerentes à condição. Muitas vezes, vivem como as águas-vivas, são orientadas pela sensibilidade visual, ou cheiros, abrem “o espaço obstruído pela audição”. Rosenfeld explora tais subterfúgios da sobrevivência. Contudo, ao não intensificar o estado aflitivo que significa sair da condição moderada de surdez para a severidade da anacusia, a personagem Louise perde força.

Talvez minhas exigências e ressalvas devam-se ao fato de conhecer intimamente muitas das angústias e dúvidas da jovem protagonista. Então, diante disso e de tantas observações críticas, por que senti o livro como perturbador? Igual à personagem, sou surda unilateral desde a tenra infância. O fluxo da voz de Louise remexeu em antigas feridas e me apresentou novos paradigmas para dilemas íntimos tão enraizados, que, ilusoriamente, acreditava serem exclusivos.

Nada sabia sobre a autora, mas terminei a leitura convicta de que a voz narrativa fora criada por alguém portadora da deficiência, hipótese que se mostrou verdadeira. Impossível não pensar no fusionamento de Rosenfeld-Louise, em umbilical exercício de autoficção solipsista, recorrendo aqui aos ensinamentos críticos de Tzvetan Todorov. Mesmo que vivida de maneira individual, egoica, a crise ética experimentada pela personagem é, sem dúvida, a mais importante questão do livro.

No caso de Louise, o sistema social já a reconhecia como pessoa com deficiência. A questão só se tornou mais ampla com a perda súbita da audição do outro ouvido. São questionamentos filosóficos que passam a atormentá-la. Do tipo: se o implante a fará escutar de maneira artificiosa, significa que os sons antigos, naturais, desaparecerão, e ela perderá muito de sua memória. Daí a ideia do herbanário de sons. Identifiquei-me ainda mais com seu desassossego: em derivações sobre o uso do coclear, sempre penso, quase alucino, que um som metálico será acionado nas pessoas submetidas à cirurgia e elas deixarão de se autoidentificar, necessitando de uma remodelagem existencial.

Dúvidas, no mundo real, pouco comentadas, raramente analisadas nas interações entre pacientes e médicos que lidam com essa deficiência pouco reconhecida e entendida “pela sociedade ouvinte”, no uso de expressão da narradora. É comum escutar de profissionais algo como está dito na narrativa: “a perda não é uma subtração do seu ser”.

Um dos desdobramentos das perguntas formuladas pela personagem também reside em saber se ela continuará a ser a mesma, pois os sons apreendidos ao longo da vida a definem, são partes importantes de seu estar no mundo e, ao adquirir os novos provindos do implante, ela poderá ser outra. Seus sussurros dizem: “Os sons que batiam em meu tímpano morto compunham a trilha sonora daquelas lembranças”. No jogo interno de argumentos e contra-argumentos, ela sente que com a surdez total deixará de sentir “o calor dos sons, essa pátina feita de vento, de cor e de todas as texturas que o som pode ter”.

Aqui permito-me uma digressão: no Brasil, cegos unilaterais são considerados Pessoas com Deficiência (PCDs). Um surdo unilateral, não. A luta dessa parcela da população sofreu importante derrota em dezembro de 2022. Um dos últimos atos do não-presidente expulso do Palácio do Planalto foi vetar o projeto de lei que garantia direitos às pessoas com deficiência auditiva unilateral total. Uma multidão de brasileiras e brasileiros cotidianamente discriminados em muitos níveis, que a exemplo de Louise convivem com “velhos fantasmas traumáticos”.

Gente que tende a se isolar do mundo. Gente para quem ler lábios é promessa de linguagem. Gente que, ao fazer um concurso público, é reprovada nos exames médicos, mas também não pode reivindicar o enquadramento na cota para PCDs. Gente protagonista de uma invisibilidade que, só recentemente, começa a fazer parte do imaginário coletivo, em filmes e livros, a exemplo do intrinsecamente tenso e comovente “A estrangeira”, de Claudia Durastanti. Como alerta a narradora de “Águas-vivas”, não há heróis surdos e nos mitos fundadores “a empatia era inegavelmente reservada aos cegos”.

Sobre a decisão final tomada pela protagonista, não darei spoiler. Apenas digo que o “devir-silêncio” de Louise chega a buscar aconchego no amigo soldado imaginário a acalentá-la com uma música cuja letra não tem consoantes. Conto-lhes também: pessoas surdas inventam mundos com sons faltosos, maneira de tentar atravessar sua condição e se aproximar daquelas convencidas de uma suposta completude. Muitas, como a personagem criada por Adèle Rosenfeld, também sabem que “a existência, claramente, é o lugar mais bonito para atravessar”.

“Águas-vivas não têm ouvidos”
• Adèle Rosenfeld
• Tradução de Flávia Lago
• Editora Fósforo
• 200 páginas
• R$ 69,90

Graça Ramos, mestre em Literatura e doutora em História da Arte, é autora de “O apagamento de Volpi: presença em Brasília” (Tema Editorial).