Rosa Montero  -  (crédito: Lucas Seixas/Folhapress)

Rosa Montero

crédito: Lucas Seixas/Folhapress

“Sempre soube que alguma coisa dentro da minha cabeça não funcionava direito.” Eis a frase de abertura de “O perigo de estar lúcida” (Todavia), o mais recente livro da espanhola Rosa Montero. Sucesso no Brasil e em outros países ao unir biografia e ficção em livros como “A louca da casa” e “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, Montero volta a utilizar a experiência pessoal para, em primeira pessoa, conduzir o leitor em uma fluente e surpreendente jornada em busca das conexões entre criatividade, instabilidade mental e solidão. “Tenho o sentimento que, de alguma forma, esse é o livro da minha vida”, afirma, em entrevista ao Estado de Minas.

Nascida em Madri em 1951, Montero conta no livro que faz parte dos 25% da população mundial que sofre ou sofrerá de algum problema mental ao longo da vida, “e também, por consequência, da estatística particular dos escritores pirados.” “Meu caso não é de depressão, mas de angústia”, revela, antes de detalhar como foi acometida por “uma onda de pânico indizível, um medo puro e duro de uma intensidade que eu jamais experimentara antes e que, além de tudo, não tinha nenhuma causa aparente”.

Além de expor as próprias crises, Rosa Montero cita episódios da vida conturbada de escritores como Virginia Woolf, William Faulkner, Sylvia Plath e August Strindberg. Ela atribui a estes e outros criadores “uma incapacidade maior ou menor de apenas viver, direta e simplesmente, como o cachorro que se deita sob um raio de sol e deixa o calor se espalhar com lentidão pelo seu corpo.”

A escritora espanhola arrisca uma explicação para o descompasso entre a atividade criativa e as ações cotidianas: “Um dos motivos é a possibilidade de que sejamos pessoas mais dissociadas que a média, ou pelo menos mais conscientes da nossa dissociação”. Por isso, ela diz não gostar de escrever romances autobiográficos. “O mais maravilhoso é sentir-se dentro de indivíduos diferentes de você. A ficção é uma viagem ao outro, e esse é o trajeto mais fascinante que uma pessoa pode fazer”, defende Montero.

A brasileira Clarice Lispector é citada em “O perigo de estar lúcida” com a reprodução de uma sentença: “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir”. Aos que têm vocação e talento, contudo, Rosa Montero reserva as palavras mais notáveis: “Somos viciados em intensidade. Já falamos antes que temos dificuldade de viver a vida por si só; que a realidade se solta de nossos olhos e mãos como um cenário teatral barato e mal colado nos bastidores de madeira do palco. Diante dessa rotina tão carente de brilho e de autenticidade, nos vemos obrigados a recorrer a uma dose de transcendência”, afirma, antes de concluir: “Somos incansáveis caçadores do sublime. Por isso, escrevemos e pintamos, esculpimos e compomos, para roubar do sol um tiquinho do seu fogo”.

ENTREVISTA Rosa Montero (Autora de “O perigo de estar lúcida”)


“Passei a saber por que a minha cabeça funciona de forma estranha”

 O que a levou a escrever “O perigo de estar lúcida”?
Você não escolhe as histórias que você conta. As histórias te escolhem. De repente, uma imagem se acende na sua cabeça, por exemplo, e te empolga tanto que você precisa escrever sobre isso. Os temas de “O perigo de estar lúcida” circulavam na minha cabeça desde a infância. Como eu digo na primeira frase do livro: eu sempre soube que havia algo que não funcionava bem dentro da minha cabeça e tenho escrito sobre esses temas ao longo da minha vida. Em “A louca da casa”, que publiquei há 22 anos, eu já levantava algumas das questões que respondo neste livro. Ou seja: aquilo realmente sempre esteve lá. Um dia recebi um telegrama interno, um daqueles telegramas enviados pelo seu inconsciente que lhe vêm à cabeça. Esse telegrama dizia: ‘O próximo livro que você vai escrever vai ser sobre criação e loucura e não vai ser um romance, será um de seus artefatos literários’. Porque o tipo de livro que eu faço é muito difícil de definir. Mistura muitos ingredientes: um pouco de ensaio (mas não convencional), um pouco de autobiografia, um pouco de biografias de outros autores e de não-ficção. São livros híbridos, mestiços, que chamo de artefatos literários. E era o que dizia o telegrama que apareceu na minha cabeça. Que seria um artefato literário sobre criação e loucura.

O que você descobriu durante a produção do livro, a respeito da relação entre criatividade e instabilidade mental? Acredita que, agora, sabe por que “alguma coisa dentro da sua cabeça não funciona direito”?
Tenho o sentimento que, de alguma forma, esse é o livro da minha vida. Responde às perguntas que faço a mim mesma por toda a minha vida. Passei a saber por que a minha cabeça funciona de forma estranha, por que escrevo e a relação entre a escrita e outras particularidades não só da minha vida, mas de todos. “O perigo de estar lúcida” não é um livro de testemunho. Não escrevi este livro para dizer que essas coisas acontecem comigo, mas para tentar entender o que acontece com todos nós, os motivos que nos levam a nos trancar em um canto de nossa casa por anos para escrever mentiras. Isso é realmente um trabalho? Bizarro e absurdo, não? Então, consegui responder nesse livro todas as perguntas que circulavam na minha cabeça há muitos anos e ainda entender uma parte do mundo que era muito importante.

Você submeteu os originais às leituras de um psiquiatra e de uma neurologista. Como estes e outros profissionais, mais as leituras especializadas, a ajudaram com o livro?
Não é que esses profissionais me ajudaram na construção do livro. Meus livros, mesmo nos romances, também têm muito conteúdo científico porque eu gosto muito de ciência. Por isso, quando eu termino, mando o último rascunho para leituras de especialistas que podem me ajudar a não cometer nenhum erro. Sou muito grato a eles, mas são observações menores. O que realmente me ajudou a fazer este livro foram as leituras, reflexões e autoanálises que fiz ao longo da minha vida.

“A ficção é uma viagem ao outro”, você escreve. O que é mais fascinante e mais perigoso nessa viagem?
O mais fascinante é justamente conseguir sair do confinamento da sua vidinha, não é mesmo? Porque mesmo as vidas da maior mulher ou o maior homem da história, de Marie Curie ou de Alexandre O Grande, são muito menores do que nossos sonhos, do que as possibilidades de viver que tínhamos quando viemos ao mundo. Quando crianças, podemos ser absolutamente tudo. O tempo é um jardineiro, que corta as possibilidades de ser e nos deixa trancados em nossa vida, que é sempre muito menor do que tudo o que poderíamos ser. Então, o fascinante é poder sair da própria vida e viver outras existências, viver aquelas outras vidas possíveis. Não vejo nada de perigoso nessa jornada, apenas a maravilha de poder expandir muito mais a vida. É como ler: lemos romances (ou vamos ao cinema e teatro) porque nossas vidas não são suficientes para nós. Como dizia Fernando Pessoa, a existência da literatura é a prova inequívoca de que a vida não nos basta. A mesma coisa acontece quando você escreve, só que muito mais forte. É uma jornada ainda mais intensa.

Poderia explicar como se forma o que você chama de “tempestade perfeita” e resulta em uma criação artística?
A explicação é muito longa, é o que me levou praticamente a fazer todo o livro. O que eu posso dizer que aprendi escrevendo é que, para me tornar um artista (e eu digo ‘artista’ usando minúsculas porque talvez seja um artista muito ruim, ou seja, não estamos falando da qualidade do trabalho), para uma pessoa dedicar sua vida a algo criativo, é preciso que tenha havido uma coincidência de tantas circunstâncias que se forma uma ‘tempestade perfeita’. Analiso estas circunstâncias, uma a uma, no livro. Não posso dizer todas aqui, mas um dos pontos é uma grande energia física, uma energia vital. (No livro, Montero acrescenta outro ingrediente à ‘tempestade perfeita’: “Uma incapacidade maior ou menor de apenas viver, direta e simplesmente, como o cachorro que se deita sob um raio de sol e deixa que o calor se espalhe com lentidão por cada um dos seus pelos, da ponta à raiz, e dali até a pele, e ainda mais fundo, à camada de gordura e à carne, até inundar seu coração com um cálido regozijo.”).

Por que a paixão pode sabotar a criação?
Não é que a paixão sabota a criação. É que, quando você está apaixonado, é aquilo que você quer viver: os primeiros momentos febris da paixão amorosa. Por alguns meses aqueles momentos me afastam de escrever. Acho que isso acontece porque a paixão amorosa é uma outra história, uma invenção, a maior invenção que os seres humanos podem criar. E, claro, essa invenção da paixão absorve tudo de sua capacidade imaginativa. Mas, vamos lá: isso pode te distrair, no máximo, por alguns meses, não é mesmo? O que realmente sabota a criação é o inimigo interno. Ou seja, a insegurança. A síndrome do impostor. Aquele personagem interior nefasto que sussurra: “Você é inútil, você não vale o que faz, é horrível você começar a escrever um livro com a quantidade de livros maravilhosos por aí’. Isso é que sabota a criação, na verdade.

O que aprendeu nos encontros com as escritoras Ursula K. Le Guin (1929-2018) e Doris Lessing (1919-2013) e levou para o livro?
Aprendi muito nos encontros com Ursula K. Le Guin (norte-americana, autora de livros de ficção científica como “A mão esquerda da escuridão”) porque a considero uma de minhas professoras literárias e tive a sorte de me tornar amiga dela. Era uma mulher com inteligência e criatividade brutais, uma imaginação incrível. Mas tive medo porque, quando ela chegou a uma idade avançada e o estado de saúde se agravou, ela parou de escrever. É dá medo de que a mesma coisa aconteça com você. Só encontrei Doris Lessing (britânica, autora de livros como “O carnê dourado”) uma vez, quando ela já estava muito velha. Foi uma entrevista muito emocionante. Era uma mulher muito melancólica e depressiva que tinha passado por fases difíceis na vida, como a perda de um filho. Conversamos sobre as dificuldades de envelhecer e perguntei se ela ainda mantinha o prazer de viver. Ela disse que nunca tinha pensado se a vida era boa. Eu perguntei, então, se ao menos o prazer da curiosidade e a vontade de escrever ainda estavam mantidos e ela disse que sim. Então publiquei essa entrevista em um apêndice do livro.

 

Trechos de “O perigo de estar lúcida”

“A realidade do mundo é uma invenção, uma miragem tremeluzente, é algo tão incerto que estou convencida de que mesmo as pessoas menos imaginativas intuem que além das paredes das suas casas se esconde um abismo.”

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“Muita gente tem imaginação e é criativa, embora depois não faça nada específico com isso. Mas o que está claro para mim é que, para que haja uma criatividade produtiva, isto é, para que se construa essa forma exata de ser alguém que conduz à obra, seja ela boa ou ruim, é necessária a combinação de um bom número de fatores. Há uma tempestade perfeita por trás de cada livro, de cada escultura, de cada quadro e cada música.”

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“Ser romancista, na verdade, é uma atividade bastante estranha, quase diria extravagante. Consiste em passar uma quantidade enorme de tempo, dois anos, ou três, ou o que for, trancada sozinha num canto da sua casa, inventando mentiras (...). E, ao imaginar, você investe o melhor de sua existência. Suas horas mais íntimas.”

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“Acho que quase todos nós, romancistas, temos a intuição, a suspeita ou mesmo a certeza de que, se não escrevêssemos, ficaríamos loucos, ou nos desmantelaríamos, desmoronaríamos, a multidão que nos habita iria se tornar ingovernável. Sem dúvida seria uma existência muito pior. Talvez nem mesmo chegasse a ser uma existência.”

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“Não gosto de escrever romances autobiográficos. O mais maravilhoso é sentir-se dentro de indivíduos diferentes de você. A ficção é uma viagem ao outro, e esse é o trajeto mais fascinante que uma pessoa pode fazer.”


“O perigo de estar lúcida”
• Rosa Montero
• Tradução de Mariana Sanchez
• Todavia
• 272 páginas
• R$ 74,90