l "Poemas Coligidos (1983-2020)" l Rodrigo Garcia Lopes -  (crédito: Reprodução)

l "Poemas Coligidos (1983-2020)" l Rodrigo Garcia Lopes

crédito: Reprodução

“Poemas coligidos (1983-2020)”, de Rodrigo Garcia Lopes, editado este ano pela Kotter Editorial, reúne sete volumes, publicados ao longo de quase 40 anos, dos seguintes livros: “Solarium” (1994), “Visibilia” (1997), “Polivox” (2001), “Nômada” (2004), “Estúdio Realidade” (2013, finalista do Prêmio Portugal Telecom), “Experiências Extraordinárias” (2015) e “O enigma das ondas” (2020). O livro é um catatau de aproximadamente 600 páginas, que reúne seu material principal, a poesia, e também fortuna crítica, prefácios e documenta a produção total de Rodrigo Garcia Lopes (traduções, entrevistas realizadas, publicações de traduções em plaquetes, discos, romance e como editor de revista literária ‘Coyote’).


Antes de tudo, é bom que se esclareça que estamos diante de um poeta profundamente sério, que tem dedicado sua vida totalmente à criação artística, seja ela poesia, tradução, música, crítica ou romance (é o autor do elogiado romance policial “O trovador”). O amadorismo passa longe de tudo que é produzido por Rodrigo Garcia Lopes, nascido em Londrina (PR) em 1965. Não é fácil dar conta numa resenha desta longa produção de quatro décadas em que o poeta se dedicava a uma gestação poética que engloba pesquisa com a linguagem, enfrentamento com os dilemas do seu tempo e questões existenciais.


O poema de abertura, “Phanums”, é uma porta que se abre ao leitor, chamando a sua atenção para o interesse que o poeta tem pelas coisas vívidas: “O pensamento/ não se detém em nada/ mas vagueia/ entre/ cada/ coisa vívida”. Seja a observação de um lugar, uma cor, uma flor, uma nuvem ou qualquer outra coisa, o que os objetos do mundo representam é uma possibilidade de existirem, agora, como elemento poético dentro do verso. Essa “transfiguração do lugar comum”, para usar um termo do filósofo-crítico de arte Arthur Danto, é uma operação que faz reviver a forma ou o sentido de determinado objeto que interessa ao poeta retirar do espaço da prosa do mundo (ou seja, de seu lugar e função utilitária) para que seja percebido em outros termos através da poesia.


A transfiguração pode englobar tanto a presença de objetos, seres, situações como de sua ausência. Veja-se o caso do poema “Londoneliness”, que trata da ausência do som, que entristece o poeta, pois não pode ter nem a presença sonora da chuva, que seria um alívio para sua existência. O poema é criado através de uma espacialidade onde palavras e versos são afastados, numa espécie de zig-zag que demarca a temporalidade lenta da leitura que é, possivelmente, a da passagem do próprio tempo que se arrasta.


Poesia japonesa

Outro elemento importante na poética de Rodrigo Garcia Lopes é sua relação com a poesia japonesa. Nessa coleção se destaca “Satori uso”, experiência que graficamente altera o desenho da poesia ocidental (que aqui, agora, se faz presente como se fosse haicais) e insere a observação oriental dos elementos da natureza que se constitui como momento para a reflexão filosófica. Por exemplo: “mínimo tempo/ dado a se viver/ chuva num crisântemo/ um pensamento”.


O poeta também, como exigia Baudelaire, deve às vezes descer aos infernos. É o que faz Rodrigo Garcia Lopes ao observar o mundo em sua volta. Para isso se presta a série de poemas de “Pandemonium”. Um poema que retém a imagem dolorosa do mundo é “Odisseia paulistana”, retrato duro da alienação contemporânea. Ao retratar a odisseia do homem contemporânea dentro de uma estação de metrô, com direito a ironia da estação de partida chamar-se “Paraíso”, o que temos é o périplo de uma população mergulhada numa “jornada fugaz” rumo a Hades (o submundo, o reino dos mortos). Os “anjos andrajos/ tentando voltar para casa”, “no teatro do absurdo deste instante”, representa aqueles que são sugados pelos objetos alienantes do mercado-capital, como o uso de smartphones e suas narciso-selfs projetadas para um universo paralelo vazio.


Há poemas pesados, que são reflexões atuais sobre a guerra e a violência, como os dois se pode ler abaixo: “Words, swords” e “Zeitgeist”. Prenúncio de tempos terríveis, onde a vida vale pouco e os senhores do mundo continuam moendo seres humanos como se bestas fossem. A persistência da qualidade da criação de Rodrigo Garcia Lopes é visível ao se navegar pelos seus poemas, seguindo qualquer ordem temporal que seja da leitura dos livros aqui organizados. O poeta, de fato, nunca deixa a peteca cair. Há em cada livro um cruzamento equilibrado entre exigência de rigor e sensibilidade, concentração e intuição, razão e imaginação. O fato de poder ter e ler toda a obra de um poeta num único volume amplia nossa relação de prazer com os seus poemas, quando podemos perceber as tensões que animam uma criação singular, com a variação de seus temas, suas preocupações existenciais e sociais e suas possibilidades linguístico-poéticas. 

Jardel Dias Cavalcanti é professor de Crítica de Arte e História da Artes (UEL-PR) e colunista do site www.digestivocultural.com

 

Dois poemas de Rodrigo Garcia Lopes

“Zeitgeist”

Nocauteando celebridades disfarçadas de pinguins Monitorando a muvuca das transações e trapaças alpinistas Serpenteando entre escadarias cravejadas de citações Chutando o balde do crepúsculo com o bebê da aurora dentro Chegando firme na dividida com a mentira, pisando o calo da calúnia
Colecionando estoques de paciência e delatores pederastas Beliscando morenas de fiberglass e pixels de altíssima definição Pegando marqueteiros pela orelha, levando o bispo milionário pelo pescoço
Mostrando seu catálogo de golpes de jiu-jitsu para web designers Apavorando editores de moda com crucifixos de merda Partindo pra ignorância pra cima das floriculturas Esfaqueando a manhã e as boas intenções com sua adaga afiada Pulverizando jogadores de genoma e modelos chipadas Dando geral nos arquivos adulterados dos tribunais de justiça Assaltando pipoqueiros metafísicos e banqueiros artistas de fim de semana Distribuindo pirulitos de ácido para críticos literários Arrebentando a boca da razão com denúncias inconsequentes Estrangulando docemente a tarde carregada de câmeras de vídeo & trance music Pregando a irresponsabilidade fiscal, e antraz para todos, Rifando o shopping lotado de ideias fixas com um grito de jihad O homem-bomba entra no poema.

“Words, swords”

War vem de werre, A forma do dialeto do norte Do francês antigo guerre. Do latim medieval guerra.
Do germânico werra, luta, ‘discórdia, revolta, peleja’; usado também na base wers (origens da palavra inglesa worse, pior, e da alemã wirren, confuso). Warrior. Guerreiro. Um homem confuso.
Logo, guerrear era confundir. Pior, causar confusão. E assim erra, entre guerrilhas,A etimologia.

l "Poemas Coligidos (1983-2020)" l Rodrigo Garcia Lopes

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“Poemas Coligidos (1983-2020)”
Rodrigo Garcia Lopes
Editora Kotter
632 páginas
R$ 118,70. no site da editora (kotter.com.br)