Até mesmo o leitor mais distraído percebeu que o termo democracia esteve presente no debate público nos últimos anos, seja por arroubos da direita ou da esquerda em diversos países. No Brasil, o assunto ganhou ainda mais relevância depois do atentado no dia 8 de janeiro, perpetrado por golpistas, os quais invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Superior Tribunal Federal (STF).
Nesse contexto, pode ser útil a obra “O homem que compreendeu a democracia: a vida de Alexis de Tocqueville”, de Olivier Zunz, professor de História da Universidade de Virgínia, lançado no Brasil pela Record. O livro é uma biografia do filósofo, político, historiador e pensador francês que ainda influencia os estudos sobre a política.


Zunz escreveu o livro percorrendo a linha cronológica do tempo, do nascimento de Tocqueville, em 1805, até a morte, em 1859. De início, chama atenção o fato de o filósofo ter nascido em uma família nobre, com muitas posses e beneficiária do Antigo Regime francês - alguns antepassados inclusive foram guilhotinados no período de terror após a Revolução de 1789.


A posição política esperada de um herdeiro é a de garantir seus bens e lutar pela continuidade de um sistema político que o beneficie. Contudo, Tocqueville viu na democracia um modelo capaz de garantir um bem comum, mesmo contradizendo interesses da sua família. A perspicaz observação social e a sua capacidade de raciocínio político garantiram ao francês destaque entre os maiores pensadores políticos.
A vida de Tocqueville mudou de fato em 1831, quando embarcou para os Estados Unidos, aos 25 anos, para conhecer o sistema prisional local. Não fossem a família abastada e a influência que possuía jamais conseguiria observar de perto o país que serviu de inspiração para sua obra prima, o livro “A democracia na América”.


Sobre a democracia, Tocqueville resume, de acordo com citação feita por Zunz no livro (p.142): “A democracia não dá ao povo um governo mais eficiente, porém aquilo que ela faz nem mesmo o governo mais eficiente tem o poder de realizar. Ela propaga na sociedade uma atividade incansável, uma força superabundante, uma energia que jamais existe sem ela, e que, se as circunstâncias forem até mesmo ligeiramente favoráveis, pode realizar milagres.” No lançamento, “A democracia na América” foi um sucesso de vendas na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ainda mais influente, Tocqueville se torna parlamentar e ministro de estado, embora sem grande relevância, longe de liderar ou protagonizar os grandes movimentos que marcaram uma fase de grande ebulição no país.


No poder, Tocqueville revela suas contradições - e, aqui, o biógrafo Olivier Zunz alerta que não há anacronismo, mas um rigor sobre os fatos históricos. Tocqueville se mostrou favorável ao colonialismo francês no norte da África em meados do Século XIX, indicando que os interesses nacionais da França estavam acima dos valores democráticos. Em suas cartas, classificava os franceses como civilizados e os argelinos como bárbaros. Além disso, defendia os abusos e violência dos invasores.


“Como foi possível um grande teórico da democracia, perguntamos hoje, ser também o partidário de um colonialismo brutal?”, questiona Zunz. O mesmo Tocqueville que recriminou o extermínio dos indígenas nos Estados Unidos apoiou a tomada de territórios africanos à bala pelos franceses.
Esse aspecto contraditório pode remeter mesmo que simbolicamente a uma asserção do filósofo russo Mikhail Bakhtin, que entende não haver identidade possível entre a experiência vivida e a totalidade artista. O Tocqueville filósofo, que defendeu um sistema de governo justo e igualitário em 'A democracia na América', agora é outro Tocqueville, o político francês que aceita a opressão francesa na África, diminuindo o continente e seus moradores.


Como é característico em biografias, há espaço para a esfera do íntimo, pois os desdobramentos da subjetividade dentro de quatro paredes costumam revelar muito sobre certas figuras. O jovem Tocqueville recebe a melhor educação formal possível, mas nem por isso deixa de ter suas aventuras, como um relacionamento escondido aos 16 anos com uma mulher, que possivelmente engravidou e gestou o primogênito do pensador: Louise Charlotte Meyer. O autor é cauteloso ao dizer que há evidências disso, mas deixa tudo no campo da possibilidade.


Tocqueville se casa e parece ter um relacionamento um pouco instável, como quase todo relacionamento, mas verdadeiro com Marie Mottley. No geral, ele passa a vida dentro de castelos, com excelentes condições materiais, escrevendo e lendo sobre temas ligados à política e à história. Ainda publica outro livro que se torna referência, “O antigo regime e a revolução”, antes de morrer com 53 anos, em Cannes. Entender esse importante personagem da história pode nos auxiliar a pensar na democracia que sonhamos. 

 

l "O homem que compreendeu a democracia: A vida de Alexis de Tocqueville"

Reprodução

“O homem que compreendeu a democracia: A vida de Alexis de Tocqueville”
Olivier Zunz
Tradução de Carlos Eugênio Marcondes
de Moura
Editora Record
658 páginas
R$ 110

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