A escritora equatoriana Mónica Ojeda -  (crédito: Carlota Vida)

A escritora equatoriana Mónica Ojeda

crédito: Carlota Vida

Ludimila Moreira
ESPECIAL PARA O EM

“Voladoras” é um livro de contos e o terceiro da equatoriana Mónica Ojeda publicado no Brasil, antecedido pelo romance “Mandíbula” e os poemas de “História do leite”. Nos contos de “Voladoras”, primorosamente traduzidos por Silvia Massimini Felix, um lirismo perturbador de matiz gótica convoca paisagens, currutelas e mitologias de comunidades do Equador andino, construídos em linguagem de alto empenho sensorial. Esse gótico andino como projeto estético fissura a representação típica da violência latino-americana e abre novo espaço para a presença de contrastes desses microcosmos familiares e sociais, colocando a perspectiva do feminino como signo que radicaliza o erótico, o terror e o patriarcado.

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Há em as “Voladoras” um prolongamento estético dos sentidos macabros dos rituais e das relações perversas entre as personagens mulheres que renegam o moralismo evangelizador das famílias e da escola presentes em “Mandíbula”. Em ambos os livros a polifonia se estiliza num ritmo de fascínio pelas subjetividades de mulheres expostas ao terror de uma sociedade violenta. Jogos, rapto, bruxaria, aborto, pulsões libidinais, fantasia aparecem como reação e manifestação de uma apropriação e transformação feminina da violência outrora monopolizado pelos homens.

No mundo ficcional das ‘voladoras’, nos acompanha uma crueldade que se destaca como marca da geografia e de uma linguagem que transgride o racional ao inventariar a beleza e o êxtase e a tragédia de acontecimentos violentos, que, junto a uma exuberância constante, tensiona a monumentalidade das paisagens montanhosas andinas e constroem uma zona poética perpétua de perturbação.


Sexualidade vertiginosa

No conto que nomeia o livro, um excerto de relato oral da comunidade de Mira sobre bruxas permeia a história de uma família narrada por uma adolescente em descoberta da sexualidade e seus tabus. É por ela que sabemos dos rastros, da moradia e da subjetividade desses entes fantasmáticos, reveladores de desejos recalcados, do medo e de uma sexualidade vertiginosa: as ‘voladoras’. Elas não gostam dos balões que a mãe da narradora enlaça nas árvores da floresta para afastá-las, e é pelo barulho dos estouros que a garota pressente sua chegada. Ainda que a dicção das vozes narrativas se transforme a cada conto, persiste em todos uma ânsia de desmistificar a fragilidade e a suposta passividade das mulheres.

Tanto no conto “Sangue coagulado” quanto em “Cabeça voadora” as personagens femininas se veem em disputa contra o silenciamento e os estigmas advindos do estupro, do aborto e de um feminicídio. O conjunto de impactos emocionais desses eventos não só realça a inconformidade e a vingança como manifestam também o constante apelo estético da beleza intrínseca à violência. Os contos de Ojeda borram os limites entre o normal e o patológico, contestando a representação de eternas vítimas das mulheres que ali recuperam o mundo, o corpo e as coisas por meio do transe, da retaliação, da palavra e sobretudo do inconsciente que intui, delira e impulsiona medo, coragem e chiste.

“Slasher”, o conto sobre as irmãs gêmeas Barbara e Paula aglutina temas como sadismo, sacrifício de animais, noise rock, mutilações que desafiam nossas noções de capacitismo e de transgressão, provocando-nos a pensar sobre as formas de pertencimento na adolescência e de novo a relação agônica entre o belo e a dor.

A combinação incessante entre o mundo interior sensível das mulheres e os efeitos desestabilizadores do medo e da sua ausência na psique dos personagens escancara o contínuo atrito entre a barbárie e a civilização marcado pela comunicação vertiginosa e não verbal da natureza e pelas transgressões sociais que movem desejos mirabolantes, como o do pai que em “O mundo de cima e o mundo de baixo” conjura pela escrita a ressurreição da filha.

Exuberância e catástrofe se solidificam como motes das narrativas povoadas dos significantes sangue, morte e vulcões, e em “Terremoto” a voltagem lírica da relação incestuosa entre as irmãs Luciana e Lucrécia junto à natureza como ente ativo e protagonista das vivências subjetivas invocam uma ética radical, que permeia todo o livro, sobre o valor dos escapismos e da fantasia diante dos traumas e das desigualdades sociais e sexuais.


• “Voladoras”
• Mónica Ojeda
• Tradução de Silvia Massimini Felix
• Autêntica Contemporânea
• 136 páginas
• R$ 54,90


Ludimila Moreira é historiadora e doutora em literatura pela Universidade de Brasília (UnB)