Dalton Trevisan em foto rara, da revista O Cruzeiro: escritor paranaense chega aos 98 anos com dois lançamentos que mostram a vitalidade de sua obra  -  (crédito: O Cruzeiro/Arquivo/Estado de Minas)

Dalton Trevisan em foto rara, da revista O Cruzeiro: escritor paranaense chega aos 98 anos com dois lançamentos que mostram a vitalidade de sua obra

crédito: O Cruzeiro/Arquivo/Estado de Minas

Dizer que, aos 98 anos de idade, a genialidade de Dalton Trevisan continua viva é mais do que tautologia. O contista curitibano está entre os mais animados dos nossos escritores. Há um arco de vida disponível aos leitores. O ano de 2023 nos reservou uma maravilhosa “Antologia pessoal” (Record) e acaba de surpreender com a reedição em tiragem limitada, pela editora curitibana Arte & Letra, do primeiro livro: “Sonata ao luar”, novela lançada originalmente em 1945. Ninguém escreve como ele, considerado em 2013, em enquete promovida por este Estado de Minas, o maior escritor brasileiro vivo.


A dupla notícia vem carregada de contrastes. A estreia aos 20 anos é tomada de hesitações. A “história de um sujeito magro, que ficou triste de tanto tocar violão”, como diz o narrador-protagonista Balduino, apenas aponta para a grandiosidade futura. Compreende-se com facilidade por que o autor sempre quis deixar a obra de fora da sua bibliografia, como quem prefere esconder as pequenas mentiras pronunciadas na infância literária.


Negou o volume, tirando da bibliografia “oficial”. Reconhecia que a sonata titubeia existencialmente sobre um painel da vida familiar provinciana e seus personagens que procuram, sem sucesso, escapar da caricatura. A redundância narrativa, às vezes explícita, serve como campo de prova para a potência que virá anos depois. É Dalton Trevisan se preparando para ser Dalton Trevisan, corpo que experimenta limites da linguagem ainda de maneira tímida.


A diferença que se percebe à frente, a começar pela redução na extensão da novela ao conto, frisa as estratégias que o autor transformaria em marcas pessoais, um “ímpeto destrutivo”, como o professor e crítico Augusto Massi bem demarca no excelente prefácio à “Antologia pessoal”: “desmontagem da sintaxe narrativa, recusa do enredo tradicional, dissolução das fronteiras entre gêneros”.


Ao desmanche da máquina textual cola-se o desejo oposto de organizar. Tanto é assim que Trevisan ganhou fama de perfeccionista, aquele que estaria sempre reescrevendo, revisando, reeditando, em gerúndio permanente. Interessante realçar como isso se quer similar à literatura do autor e à vida de todos nós. Tudo se refaz a partir de novos e incessantes contornos e tensionamentos.


Os 94 contos da “Antologia pessoal” foram escolhidos entre aproximadamente 700 histórias curtas publicadas em 49 títulos, incluídos volumes de inéditos e sete antologias. Vão de “Novelas nada exemplares” (1959) até o último livro, “O beijo na nuca”, lançado em 2014, ou seja, há nove anos. Para quem havia pensado na aposentadoria, ele apresenta um “novo” livro com sua assinatura.


É certo que Dalton Trevisan nunca foi escritor de um livro só ou de poucos livros. E não estava “pronto” na estreia. Ele próprio sabia que faltava algo a seu narrador: "Eu não chego a ser um homem, até pareço mais um personagem de novela...”. Houve desenvolvimento e, aos poucos, profusão, ímpeto, impureza. Trevisan evolui como escritor rumo à contenção e à elipse, numa percepção singular do silêncio que corre entre as palavras, como já notou parte da crítica.

Capas dos livros de Dalton Trevisan

Capas dos livros de Dalton Trevisan

Reprodução Record e Arte Letra


Entre o real e o imaginário

Nesse refrear do ímpeto beletrista, a literatura de Dalton Trevisan vai se acomodando entre a realidade e o imaginário. O lobo, o vampiro, o fantasma. Ela é esse transe simultâneo entre sonho e vigília. O ladrão, o moço de bigodinho, o malandro. Ninguém efetivamente fala daquele jeito entrecortado, ninguém come verbos com tamanha voracidade, ninguém diz coisas de modo tão telegráfico. Mas somos o paradoxo desta gramática mastigada, torta e direta no ponto. “O que você quer. Não sou bonita? Me ver nua?”, perguntam as frases de um monólogo involuntário no magnífico conto “João é uma lésbica”.


O que está como instrumento puro na “Sonata ao luar” ganha uma voz inconfundível com o transcorrer do tempo. Passamos, seus leitores, a ser essa classe média que caminha rumo a uma morte de véu e grinalda. Somos esses seres da morbidez da casa e da sordidez da rua. Encontramos na leitura dos contos de Trevisan o erotismo do deslumbramento do outro em seus desejos indomáveis.


Assim como na realidade humana, a reinvenção da identidade da narrativa começa e termina no mesmo corpo-escopo biográfico. Dalton será sempre Trevisan. O que parece obviedade é, na verdade, crença no equilíbrio entre estabilidade e movimento, entre rigor e liberdade, certeza na abertura de sentidos a partir de uma pressão estética sobre o que é sempre o mesmo. Quer dizer, o autor de “Abismo de rosas” e “Macho não ganha flor” se repete como método, inclusive na arte de dar títulos maravilhosos a suas reuniões de contos.


A reedição de “Sonata ao luar”, mesmo sem corrigir pequenas falhas do artista quando jovem e imaturo, enche de felicidade o coração dos fãs do nosso grande escritor. Permite acesso livre ao começo de tudo, em conexão direta com o que iria oferecer, entre 1946 e 1948, a revista literária Joaquim, publicação vanguardista comandada em Curitiba por Trevisan.


E é dessa “província” no Paraná que trata a obra do contista, fazendo da capital seu lócus e sua loucura. É nela que germinam as personagens dominantes nos contos, gente comum, sem sobrenome. João, Maria, Nelson. Sim, temos um autor que vampiriza tudo o que pode. Em conta-gotas: sangue real que passa por consciente reprocessamento literário.


Quem decidir andar, debaixo do braço, com a capa dura desta genial reunião de histórias há de sacar que os dramas de Dalton Trevisan são constituintes da solidão urbana neste país que aniquilou a maior parte das possibilidades de viver em paz e harmonia. Não é um retrato idílico. O escritor entendeu o desquite moral e ético, a guerra (conjugal e coletiva), o velório eterno em que se meteu o Brasil.


O itinerário que nos propõe dentro da própria obra é o da salvação pela ficção, com rimas, repetições, roçar de palavras em uma expressividade única – difícil de ser explicada, a não ser na própria experiência da leitura, transformada em elevado rancor. A sonata um tanto ingênua se transformou numa sinfonia nervosa e bêbada. Fez-noite cerrada. A amada “Genoveva linda” do livro de estreia, ideal romântico do narrador, perdeu a virgindade sem dó nem piedade, na pena dilacerante que se avizinhava.


Os suicidas, também deste começo, não precisaram mais da própria mão armada contra os diversos eus. O que os contos da nova antologia, mesmo lidos em desordem, nos dizem de maneira bastante evidente é que ninguém sai ileso deste inferno em que vivemos exilados. A canção popular é outra. Em Curitiba, o sabiá já não canta, não gorjeia. O sabiá estrebucha na oração centenária e contemporânea de Dalton Trevisan. Ai de mim. Ai de todos nós.

Doutor em Estudos Literários pela UFMG, Sérgio de Sá é professor associado na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” (2010) e “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades” (2023).

 

l “Antologia pessoal”
l Dalton Trevisan
l Record
l 448 páginas
l R$ 90,90
l e-book: R$: 49,90

l “Sonata ao luar”
l Dalton Trevisan
l Arte & Letra
l 200 páginas
l R$ 98
l Pode ser encomendado no site arteeletra.com.br