ilustraçao do livro CORAÇÃO DAS TREVAS

ilustraçao do livro CORAÇÃO DAS TREVAS"

crédito: reprodução

Um clássico polêmico e um dos personagens mais enigmáticos da literatura chegam ao mercado brasileiro em história em quadrinhos para reacender entre os leitores as reflexões sobre as consequências do colonialismo europeu. “Coração das trevas” (“Heart of darkness”) foi lançado em 1902 pelo escritor britânico-polonês Joseph Conrad (1857-1924), nascido como Józef Teodor Konrad Nalecz Korzeniowski. Conrad tinha 32 anos, em junho de 1890, quando chegou ao Estado Livre do Congo, que não era exatamente uma colônia, mas governado pelo rei Leopoldo II, da Bélgica. Com contrato de três anos, era o capitão de um barco a vapor a serviço de uma sociedade mercantil belga no continente, onde havia intenso comércio de marfim com intermediários escravistas.

Mas horrorizado com a violência, Conrad abandonou a África em menos de seis meses. O genocídio que presenciou, entretanto, mudou radicalmente sua vida. Largou a navegação e se dedicou à literatura. E sua principal obra foi “Coração das trevas”, na qual criou seu alterego, Charles Marlow, que narra sua experiência como capitão de um barco que vai à África para resgatar Kurtz, um europeu negociante de marfim que ficou ensandecido ao se misturar aos nativos, cometeu crimes bárbaros e passou a ser ao mesmo tempo temido e reverenciado.

A narrativa em dois tempos – presente e passado – de “Coração das trevas”, centrada em Marlow e Kurtz, e a grande quantidade de nativos africanos, escravos ou não, que vão surgindo aleatoriamente ao longo da obra geraram interpretações polêmicas de quem acusou Conrad de racismo. Mas o leitor mais atento vai perceber que o escritor faz o confronto ou o paralelo entre civilização e barbárie. Quem realmente são os bárbaros? Os selvagens da África ou os europeus que chegam escravizando e matando em nome da “civilização”?

O grande mote da obra, porém, é o enigmático Kurtz. Conrad deixa por conta da imaginação do leitor as causas da loucura desse homem misterioso e célebre por duas das mais famosas expressões da literatura: “O horror! O horror!” e “Exterminem todos os brutos”. O que ele queria dizer com isso? Conrad não dá explicações, deixa mesmo para o leitor interpretar esse enigma no coração das trevas.


Preto e branco
Lançada em 2020, a HQ que agora chega ao Brasil, por seu caráter sintético, deixa mesmo que leu o romance ainda mais intrigado sobre Kurtz e sua vida na África. Toda em preto e branco, a adaptação feita pelo quadrinista norte-americano Peter Kuper dá bem o tom da dramaticidade e do contraste da obra de Conrad na representação da violência dos europeus e do semblante de Kurtz no limiar da loucura. Esse equilíbrio assombroso de um tema espinhoso é marcante. “Produzir uma versão em graphic novel de “Coração das trevas” foi uma odisseia. (…) Envolvido com a narrativa de Conrad também comecei a refletir sobre fatos atuais: a corrupção nos altos escalões, a xenofobia descarada, o racismo, tudo assustadoramente similar às trangressões cometidas em nome do colonialismo e retratadas em ‘Coração das trevas’. O livro de Conrad, embora seja produto de sua era, tem muito a oferecer aos leitores modernos. Conrad produziu uma obra que, na época, chamou atenção às atrocidades que aconteciam no Congo e animou o movimento reformista. Quanto mais eu lia, mais me sentida próximo do assunto e mais considerava que uma interpretação gráfica seria relevante”, diz Kuper no prefácio da HQ.

Ele explica que usou caneta e nanquim para retratar o presente e riscos à mão, mais trêmulos, em vez de linhas à régua, para falar do passado, com lápis preto e aguadas, mais um importante passo temporal para dar mais vida à obra de Conrad. “O confronto com os elementos racistas do livro me obrigou a tratar do fértil histórico do estereótipo no cartunismo. O racismo sutil e não sutil assim está incrustado na história do cartum e da caricatura, que se apoiam em atalhos visuais para apresentar emoções, linguagem corporal e etnia. (…) Precisamos, mais do que nunca, de arte que se comprometa com o discurso social. Ter a oportunidade de navegar nessas águas me deu a chance de não só confrontar as trevas do livro, mas também de tentar iluminar o seu coração”, reflete Kuper.

CORAÇÃO DAS TREVAS”
• De Joseph Conrad
• Peter Kuper: adaptação e ilustrações
• Quadrinhos da Cia
• 160 páginas
• R$ 69,90