“A guerra não tem rosto de mulher”, escreveu a jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do prêmo Nobel de Literatura em 2015, em sua obra que trata da história de quase um milhão de mulheres que integraram o Exército Vermelho, da União Soviética, na Segunda Guerra Mundial, mas tiveram sua luta ofuscada pelo machismo. “A casa das sete mulheres”, obra lançada em 2003, pela escritora e roteirista gaúcha Leticia Wierzchowski, também fala de mulheres e luta armada, não no front, mas na retaguarda da revolta mais duradora do Brasil Império, a Revolução Farroupilha – também conhecida como Guerra dos Farrapos – entre 1835 e 1845, pela independência da então província de São Pedro do Rio Grande.

Como no livro da autora bielorrusa, a obra de Letícia Wierzchowski tem rosto de mulher e de feminismo. “A casa das sete mulheres” nasceu sim de uma vontade de trazer a mulher como sujeito da guerra. A província do Rio Grande viveu grávida de guerras por quase 200 anos, como fronteira imperial. Como subtrair a mulher desse contexto? Então, a obra nasceu dessa vontade de olhar uma guerra por um ponto de vista muito ignorado, o papel feminino nessas famílias, no contexto da revolução”, disse Letícia ao Pensar.

A obra é um vigoroso romance histórico publicado em 2002, que conta a história de Manuela, Caetana, Antônia, Rosário, Ana, Perpétua e Mariana. Elas ficaram dez anos confinadas em um casarão na Estância da Barra, da família de Bento Gonçalves (1788-1847), militar que liderou a revolta e é um dos nomes mais importantes da história do Rio Grande do Sul. Antes de partir para o conflito pela independência, Bento Gonçalves manda reunir as mulheres da família numa estância à beira do rio Camapuã, um lugar de difícil acesso, a fim de facilitar a proteção e a correspondência. Lá, as sete mulheres e quatro filhos de Bento Gonçalves vão esperar o desfecho da revolução iniciada. São elas que protoganizam o romance, veem suas vidas transformadas pelo longo conflito, que tem a participação também de outras duas figuras emblemáticas na história do Brasil: o italiano “herói de dois mundos” Giuseppe Garibaldi e sua mulher brasileira, Anita Garibaldi.

Vinte anos depois do lançamento do romance, a própria Letícia teve a ideia e fez o roteiro da adaptação de “A casa das sete mulheres” para quadrinhos, que acaba de ser lançada pela editora Maralto nos traços da ilustradora Verônica Berta. O romance é o primeiro da trilogia Farroupilha, formada ainda por “Um farol no Pampa” (2004) e “Travessia” (2017),

Depois de adaptar a obra para minissérie na TV Globo, Letícia encarou a empreitada de “enxugar” as mais de 500 páginas para quadrinhos. “Foi um trabalho grande e meticuloso, mas o resultado ficou demais”, comemora a escritora. A HQ, literalmente, enche os olhos do leitor pela riqueza das cores e dos detalhes da reconstituição histórica do Rio Grande do Sul, que inclui até elementos fantásticos. A narradora é Manuela, que, em dois tempos – quando era jovem e na velhice – conta a angústia diárias na estância enquanto os homens estão na luta contra as tropas imperiais. Destaque para Rosário, a que mais sofre o impacto do longo confinamento. Um dia, ela é surpreendida por Steban, um soldado caramuru desafeto de Bento Gonçalves, ferido dentro do seu quarto – será uma apenas uma aparição? – e acaba se apaixonando por ele. Mesmo depois que ele vai embora, Rosário passa a delirar e vê-lo como fantasma, sob a desconfiança das outras mulheres do casarão. A beleza plástica dos quadrinhos contribui para a dúvida do leitor sobre a sanidade de Rosário. Afinal, Steban é real ou um fantasma?

Já a paixão de Manuela desafia o casamento encomendado com Joaquim, filho de Bento Gonçalves. Ela fica apaixonada por Giuseppe Garibaldi, o valente guerreiro estrangeiro que retribui o amor da moça e se junta aos revolucionários. Mas no meio do caminho de Garibaldi surge a arrebatadora guerreira Anita, para desespero de Manuela. Enquanto isso, as forças imperiais avançam sobre os revolucionários.

ENTREVISTA

LETICIA WIERZCHOWSKI,
escritora

As luta das mulheres sofreu apagamento ao longo da história. Recentemente, o livro “A guerra não tem rosto de mulher”, da escritora bielorrusa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Nobel de Literatura em 2015, expôs essa realidade na história da URSS. E recentemente também Hipólita Jacinta foi oficialmente reconhecida no Panteão dos Inconfidentes no grupo de Tiradentes. Você tinha a intenção de fazer esse resgate feminino histórico ao escrever “A casa das sete mulheres”? Se não, o que a inspirou a escrever a obra?
“A casa das sete mulheres” nasceu sim de uma vontade de trazer a mulher como sujeito da guerra. A província do Rio Grande viveu grávida de guerras por quase 200 anos, como fronteira imperial. Como subtrair a mulher desse contexto? Então, a obra nasceu dessa vontade de olhar uma guerra por um ponto de vista muito ignorado, o papel feminino nessas famílias, no contexto da revolução.

Mais do que detalhar em texto o cenário histórico da Revolução Farroupilha, apresentá-lo em imagens na HQ deve ter dado um trabalho e tanto, considerando a excelência do resultado. Entre a ideia, a construção dos cenários e das personagens e a conclusão dos quadrinhos, quanto tempo levou?
Foi um belo trabalho, do qual realmente temos muito orgulho. Eu adaptei o livro pra HQ em 2019, movida somente pela vontade de levar o romance aos quadrinhos. Tivemos a pandemia, e o projeto engrenou em meados de 2021. Foi um trabalho grande e meticuloso, mas o resultado ficou demais.

O elemento fantástico na obra com a figura de Steban, tão eficaz que deixa dúvida no leitor da HQ se ele era real ou fantasma, ou os dois numa sequência de fatos, tem fundamento com alguma história real?
Mas afinal o que é realmente real? Eu brinquei com essa fronteira ao entregar a personagem Rosário a este amor. A Rosário é uma das personagens ficcionais do livro, e ela me deu a liberdade de trazer essa questão ao romance – qual o limite entre o real e o imaginado? No caso, concebi Steban como um fantasma, ele teria morrido na guerra da Cisplatina. Enfim, penso sempre numa frase de Euripedes – infelizmente muito certeira em tempos atuais: o passado lança sua sombra diante de nós. Nenhuma guerra é boa. Nem mesmo romanceada.

“A casa das sete mulheres”
• De Leticia Wierzchowski (roteiro) e Verônica Berta (quadrinhos)
• editora Maralto
• 128 páginas
• R$ 61,90

o que foi
A Revolução Farroupilha começou em 20 de setembro de 1835, na então província de São Pedro do Rio Grande. Foi a revolta mais duradoura do Brasil Império, se estendeu até 1845. O principal líder do movimento separatista foi o general Bento Gonçalves – que hoje já dá nome a um município gaúcho – que reuniu a elite da época, enfrentou tropas comandadas pelo Rio de Janeiro, capital do Império, tomou Porto Alegre e proclamou a República Rio-Grandense.Os motivos da revolta foram políticos e econômicos, em linhas, gerais, com ideais republicanos e contra a centralização do governo, e pela exportação de charque (carne seca), diante de impasses com Argentina e Uruguai. Com a ascensão de dom Pedro II, houve ampla negociação para o fim da revolta e também anistia aos revoltosos. Bento Gonçalves, que havia sido preso, foi libertado. Outros personagens importantes na revolta foram Giuseppe e Anita Garibaldi, que aderiram ao movimento.