Aurora Venturini foi premiada aos 85 anos pelo romance

Aurora Venturini foi premiada aos 85 anos pelo romance "As primas"

crédito: Sebastián Freire

Ludimila Moreira
Especial para o EM

Nascida na cidade de La Plata em 1921, Aurora Venturini despontou no meio literário argentino ao receber em 2007, aos 85 anos de idade, o prêmio Nueva Novela com o romance “As primas”, inscrito sob o pseudônimo Beatriz Portinari. A escritora e roteirista Claudia Piñeiro, estudiosa da obra de Venturini, conta que o júri especulou longamente sobre a possibilidade de ser algum jovem atrevido o responsável por aquele manuscrito batido à máquina, cheio de rasuras e papeizinhos colados com correções. Ao ser anunciada como vitoriosa, a autora teria declarado: “finalmente um júri honesto”.

Desde então, a escritora morta em 2015 se tornou um fenômeno editorial, com mais de 40 livros publicados e definida por Mariana Enriquez como uma escritora radical, excêntrica, deformada e lúdica. O romance “Nós, os Caserta”, escrito na década de 1960, chega ao Brasil pela mesma editora, Fósforo, que lançou em 2022 o cultuado “As primas”. “Nós, os Caserta” circulou sob outros títulos e com outra estrutura; o texto que hoje é editado vem de cotejamento com edições anteriores e pesquisas da professora María Paula Salerno em arquivos pessoais da autora.

A mirada ao imaginário, de sintaxe erudita, sarcástica e libidinal de “Nós, os Caserta” é direcionada à conservadora burguesia argentina com seus latifúndios, seu racismo escancarado e sua ânsia de mimetizar uma elite ilustrada europeia (sobretudo francesa). A voz narrativa que envelhece ao longo do romance é a de uma criança superdotada, María Micaela Stradolini, apelidada de Chela, que se torna cicerone de um périplo de voltagem lírica e detetivesca que percorre décadas e diversos momentos políticos do país.

Trata-se da jornada de uma heroína acossada pelo ódio dos pais, pela própria inadequação social e pelo nanismo do irmão, buscando decifrar a genealogia dessa herança mórbida que envolve ela, a primogênita, o caçula Juan Sebastián, e não alcança Lulita, a filha interposta entre as duas aberrações. O escatológico, a fantasia e o grotesco evidenciam e satirizam o conservadorismo do familismo religioso encarnado nos Stradolini e da sociedade argentina fissurada em repertórios de etiquetas como chás e jantares. O racismo também é explorado no romance como constitutivo de vidas marcadas pela violência e desamparo, tanto pela empregada Sara e quanto pela própria Chela, sua cor de pele e traços indígenas sendo tomados pelos pais, avó e conhecidos como característica negativa que a torna menos sujeito, menos digna de amor.


Versos de Rimbaud

Os jogos estilísticos de Venturini convocam os versos de Rimbaud como uma espécie de farol aos obstáculos metafísicos da protagonista no transcorrer de toda a narrativa; trechos expressivos de Proust que a personagem recitava da revista literária francesa Revue des deux monde manifestam e ilustram sua solidão, e a leitura aos gritos de ‘Romman Rollan’, convertido ironicamente em ‘Rolãn’ pela autora, dão a ver não só a centralidade da cultura francesa no imaginário argentino como também denotam a engenhosidade de Venturini em trazer um coro ora dramático, ora irônico, para essa vida enlutada e solitária.

O impulso iconoclasta de Chela é contrabalanceado por uma ética de alteridade radical com o irmão, e o rearranjo de ocupação arquitetônica do sobrado em “casa das gentes” versus sótão, como novo lar da dupla, manifesta o empenho da autora em humanizar a ambivalente Chela e o deficiente Juan.

A narradora-personagem já na velhice, retornada ao sótão, se vale dos achados de um baú como catalisador de memorabílias. Desses índices mnemônicos, papéis, fotografias, relatório da psicóloga que abandonara a prática clínica com a protagonista se abre espaço para outro ente fundante da dicção do romance, o delírio, sobretudo no final da narrativa quando é perceptível o uso de alucinógenos para o combate de dores físicas e subjetivas.

A pulsão arqueológica de descobrir a genealogia da maldição de sua família materna, os Caserta, figura como obsessão e força motriz da narrativa. Essa descida ao território italiano dos ancestrais forja uma espessura noir ao romance, já que é apaixonada pela tia-avó anã que a narradora se vê diante de um legado pouco valioso e criminoso; as filiações ao fascismo pelos parentes; os casos de incesto e de sífilis como herança de nenhuma distinção.

Ao final, a escalada de perversão, liturgias místicas e ensimesmamentos de Chela deixa de ocupar somente o sótão e se abriga em seu corpo inteiro. Talvez o desamparo da infância conjugado aos fascismos cotidianos tenha penetrado nas entranhas da menina chamada pela mãe de cataplasma e, do rastro da figura grandiloquente, aventureira e desaforada de Chela persista, como remanescente, somente a pulsão encantatória de sua linguagem: “Posso entrar e até me perder naquela arca junto com minha alma de anciã-anã-proustiana, pois no fim das contas só cheguei a isso.”

Vale a menção ao trabalho primoroso de tradução de Mariana Sanchez que nos entrega um texto repleto dos estilemas, jogos textuais e espessura misteriosa da linguagem de Venturini.

Trecho
(De “Nós, os Caserta”, de Aurora Venturini, com tradução de Mariana Sanchez)

“Il testone ostinato”, diziam os peões italianos; “El cabezudo”, diziam os espanhóis. Ano após ano, meu irmão parecia mais assustador. E era. Passaram as libélulas, os frutos, e todo verdor ficou ameno. Meu irmãozinho quase criança, quase inseto, quase fruto, quase flor, compartilharia tal fugacidade. E, daquele quadro edênico com duendes e manes, restaria um balbucio, um zumbido, uma fragrância, um torpor. Nossa existência transcorria naquela água-furtada de sabor abjeto, deslizando como lagartos, sem barulho, quando um cheirinho prometia comida, ou ambos mergulhávamos num comedor de aves, ou descíamos como ovinos até o cocho. Mas havia alvoroços quando a agulha de aço rolava pela superfície dos discos de Mozart e Beethoven, e então Juan Sebastián pronunciava suas duas palavras. Quando ele dormia ronronando como um gato, eu estudava por conta própria.”


“Nós, os Caserta”
• Aurora Venturini
• Tradução de Mariana Sanchez
• Editora Fósforo
• 192 páginas
• R$ 69,90

Ludimila Moreira é historiadora e doutora em literatura pela UnB