AFONSO BORGES - Produtor cultural
Ao longo de quarenta anos à frente do “Sempre Um Papo” e de tantos outros projetos de incentivo à leitura, eu aprendi que o livro só cumpre sua função social quando chega aonde mais se precisa dele. Nos últimos anos, descobri um obstáculo que, à primeira vista, pode parecer técnico, quase burocrático, mas que é decisivo: em ambiente hospitalar, o livro precisa ser empaginado para poder existir. Precisa ser higienizado.
Por força da convivência de uma vida inteira com o Dr. José Salvador, fundador do Hospital Mater Dei, sempre me interessei por leitura em ambientes hospitalares. Dr. Salvador, além de um leitor voraz e intenso, é um grande, um imenso divulgador da literatura brasileira. Que o diga Carla Madeira, que teve seus livros distribuídos por ele logo na primeira edição, em formato independente, sem editora.
A empaginação, desenvolvida e praticada no projeto Entre Páginas, da Faculdade de Letras da UFMG, é um tratamento artesanal que consiste em revestir cada página do livro com papel contact transparente, permitindo sua higienização completa sem danificar o miolo. Assim, cada página pode ser limpa com solução desinfetante, evitando contaminação cruzada entre pacientes e garantindo segurança em alas pediátricas e demais setores sensíveis.
Pode parecer um detalhe técnico, mas não é. Sem empaginação, o livro vira um risco sanitário; com empaginação, torna-se um instrumento de cuidado e transmissão de conhecimento. Em outras palavras: sem essa técnica, a leitura simplesmente não entra no hospital ou entra de modo precário, restrito, improvisado. Com ela, podemos construir acervos circulantes, estantes móveis, projetos de leitura mediada junto ao leito, contação de histórias, clubes de leitura para crianças e adolescentes internados.
Num país em que tantas crianças passam meses e até anos afastadas da escola por conta de tratamentos complexos, permitir que livros circulem de forma segura nas enfermarias é uma questão de justiça. A criança internada não pode ser tratada apenas como paciente; ela continua sendo aluna, leitora em formação, sujeito de direitos. A empaginação viabiliza, na prática, que esse direito não seja abandonado na porta da UTI.
Por isso, defendo que todos os hospitais que atendem crianças e adolescentes deveriam adotar a empaginação e projetos de leitura nos moldes do Entre Páginas. Universidades, faculdades de letras, cursos de pedagogia e biblioteconomia, junto com secretarias de saúde e educação, podem formar redes de voluntários e profissionais para empaginar acervos e manter uma rotina segura de uso desses livros nas alas pediátricas.