LAURA BRITO
Advogada especialista em direito
de família e das sucessões
Fiquei especialmente feliz de que, ao longo do dia do Enem, eu tenha recebido de muitos amigos e familiares a notícia do tema redação do exame nacional do ensino médio: “Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira”.
O motivo da alegria era duplo: o Enem estava reconhecendo o que era óbvio – não dá mais para não falar de envelhecimento – e as pessoas logo se lembraram de mim, que venho falando sobre planejamento jurídico para a longevidade como um mantra.
Envelhecer é o que acontece quando tudo dá certo, já que a alternativa, bom, é não estar aqui. E se envelhecer é a boa perspectiva, tão melhor que aconteça com reflexão, planejamento e leveza.
Com isso, uma pessoa pode ter o privilégio de envelhecer bem. E, veja, o que chamo de ‘envelhecer bem’ não é sobre enganar o tempo, sobre parecer que ele não passou. A face estética do envelhecimento é mera perfumaria. Envelhecer bem é ter autonomia.
Alexandre Kalache, geriatra e ativista da longevidade, defende que o envelhecimento de qualidade é o acúmulo de quatro capitais: o capital de saúde, de quem cuidou bem do corpo; o capital intelectual, que se revela na capacidade de continuar se adaptando a mudanças; o capital social, marcado pela construção de relações afetivas sólidas; e o capital financeiro, que permite pagar pelo conforto. Particularmente, sou encantada por essa abordagem clara e abrangente.
A esses quatro elementos, gosto de acrescentar um quinto capital que reputo revolucionário à abordagem do envelhecimento: o capital jurídico. Ele se caracteriza pela compreensão dos instrumentos jurídicos que podem garantir maior autonomia às pessoas em processo de envelhecimento e que formalizam manifestações de vontade para o caso de perda da capacidade ou da impossibilidade de comunicar sua vontade.
O primeiro instrumento e que mais recomendo é a prática consistente de manter documentos e informações organizados no que carinhosamente chamo de ‘pasta da vida’. A centralização de referências permite o mapeamento de providências necessárias para a regularização de bens, relações jurídicas e estabelecimento da tranquilidade. Por exemplo, permite descobrir que um imóvel daquela pessoa precisa ter sua propriedade regularizada, trazendo estabilidade de um lar para a velhice. Possibilita, ainda, decidir formalizar uma união estável de muitos anos a fim de ter segurança previdenciária.
O segundo instrumento que faço muito gosto é a autocuratela. Ela permite que uma pessoa registre seus desejos para o caso de ficar incapaz – quem deveria (ou não) ser o curador, como deveria ser a gestão financeira, como se sente em relação a instituições de longa permanência para idosos, como sua privacidade deve ser protegida. A autocuratela não tem dispositivo legal expresso, mas recentemente foi reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça ao determinar que os juízes consultem a existência de escritura pública de autocuratela nos processos de interdição.
O terceiro instrumento é, na realidade, um gênero que engloba vários tipos de documentos – as diretivas antecipadas de vontade –, entre eles, a procuração para cuidados de saúde e o testamento vital. Essa procuração é a eleição de uma pessoa de confiança que vai tomar decisões sobre a saúde do mandante quando ele não puder mais manifestar sua vontade. O testamento vital, por sua vez, é o registro do que a pessoa deseja sobre tratamentos médicos em caso de uma doença ameaçadora da vida em um momento em que ela já esteja impossibilitada de expressar suas decisões.
Conhecer cada um desses instrumentos, munir-se de informações e explorar os recursos jurídicos para o exercício da autodeterminação é o que chamo de capital jurídico do envelhecimento. É o empoderamento de uma população que vai se tornando mais vulnerável em razão da idade, especialmente agravada pelo etarismo vigente em nossa sociedade.
Envelhecer bem é meu desejo mais íntimo. É algo que me movimenta pessoalmente. Nos últimos anos essa vontade transbordou e, profissionalmente, apoiar pessoas no planejamento jurídico da longevidade se transformou em uma missão.
Por isso, a cada pessoa que se lembrou de mim com esse tema do Enem, agradeço demais a consideração. Espero que esse tema nos conecte nessa empreitada que é defender o envelhecimento com o máximo de autonomia e felicidade.