Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

Tragédias climáticas tocam profundamente os corações. A gravíssima catástrofe no Rio Grande do Sul está alimentando uma onda nacional de unidade e comoção. À tona está a reserva do tecido da solidariedade que forra o coração cultural dos brasileiros. Tecido solidário que precisa ser cuidado e fortalecido, para não correr o risco de ser momentâneo, expressão pontual, esfriando-se com o passar do tempo, perdendo a oportunidade de fazer da solidariedade a alavanca para impulsionar novos tempos. A dor do momento atual, lançando o olhar diário sobre os cenários causados pela catástrofe climática no Rio Grande do Sul, pode fecundar um novo tempo de reconstrução de uma porção importante do território geográfico e cultural do Brasil, o povo gaúcho. Tenha-se presente que a sociedade brasileira dispõe de condições e recursos variados para ser justa e solidária, a partir da adoção de outras lógicas, no mercado e, também, nas relações político-sociais, incidindo assim em ações técnicas e em prioridades políticas no horizonte do bem comum. Põe-se o desafio de priorizar recursos, relativizar muitos aspectos e discernir com sabedoria, política e técnica, quanto ao que se fazer. Uma chance, aprendida na dor e na penúria, de escolher o mais importante e urgente, a vida do povo, fazendo nascer uma nova cultura assentada sobre os princípios da solidariedade brasileira.


A reconstrução do Rio Grande do Sul pode ser a oportunidade de uma grande reconstrução do Brasil em construção. Além das ações emergenciais está posto o desafio de rever prioridades, discernir e decidir no âmbito de escala de valores sobre o que vem primeiro. Um exercício sapiencial que interpela fortemente cada instância governamental e segmentos estratégicos no funcionamento da sociedade brasileira. Lógicas primárias do bem comum têm força para novos rumos, com procedimentos adequados para novos cenários de justiça e equidade, partindo do arroio do Chuí, forrando o novo, até chegar ao Oiapoque. As considerações e aplicações técnicas e legislativas, operacionais e sistêmicas precisam estar eivadas de sentimento e sabedoria no horizonte da solidariedade.


A lágrima nos rostos de atingidos por tragédias e catástrofes deve cair onde precisa para fecundar escolhas acertadas, alavancando o novo esperado. Inspiradora é a poesia de Guerra Junqueiro, poeta português, a lágrima iluminando a força de uma escolha, fruto da solidariedade como princípio primeiro: “Era manhã de junho, numa encosta escavada, seca, deserta e nua, à beira de uma estrada. Numa estrada empoeirada, sobre a folha hostil de uma figueira brava, a aurora desprendeu, compassiva e divina, uma lágrima etérea, enorme e cristalina. Lágrima tão ideal e tão límpida, que, ao vê-la, de perto era um diamante e de longe uma estrela. Diante dela passarão, pela estrada, um rei, um cavaleiro andante e um senhor judeu avarento e mesquinho. A beleza fulgurante do astro seduz e encanta seus corações, provocando-os à disposição de negociar tudo em troca da posse daquela lágrima irisada. Diante das propostas dos três: “E a lágrima celeste, ingênua e luminosa, ouviu, sorriu, tremeu e ficou silenciosa!”. Não se deixou seduzir com as ofertas apresentadas. A promessa do rei, com seu cortejo de espavento, indicando um lugar de honra na sua coroa real, podendo contemplar do alto do seu diadema o globo a seus pés, não seduziu. Também não despertou interesse o prometido pelo cavaleiro, com a proposta de brilhar fulgurante na cruz de sua espada, podendo relampejar de vitória em vitória. Como também, não se dobrou ao preço exorbitante do que uma mão avara trocaria por ela, em valor capaz de comprar os impérios dos reis e os navios do mar. Ao lamento de um cardo agreste, na terra de coração de pedra, sofrido por nunca ter dado nem sombra e nem flor, “a lágrima celeste sorriu, tremeu e caiu silenciosa”. Culmina o poema no resultado da escolha da lágrima, reverdecendo o cardo exangue, que dá uma flor cor de sangue, como as chagas que nosso Senhor tem no peito, esperançosamente, uma flor que servia à abelha para buscar o alimento de um mel dourado.


A luz da esperança há de brilhar para fazer dos corações uma fonte de sabedoria, a fim de orientar e presidir escolhas que pavimentem o caminho da justiça, a lucidez de operações que garantam o bem de todos por meio do equilíbrio, com força para promover a igualdade solidária de um desenvolvimento integral e sustentável. A esperança alimenta o sonho e o compromisso de superação de dependências escravizadoras e excludentes. No horizonte se desponta a dimensão política dessa esperança para operar a razão e a liberdade em favor do bem, especialmente dos pobres e dos deserdados. Da dor extrema e das perdas terríveis surgem novas expectativas e oportunidades de recomeço, por meio de dinâmicas que possam substituir práticas que retardam e impedem o esperado desenvolvimento integral, incluindo todos, sem preconceitos e discriminações. A catástrofe indica e grita pela instalação de novas dinâmicas nos funcionamentos governamentais e nas lógicas relacionais, privilegiando o respeito devido a todos nos seus direitos e dignidade.


Cabe um novo movimento de crítica à prática política, como possibilidade de inauguração de um novo ciclo que não funcione apenas como uma inadiável recuperação dos desastres e perdas, mas um momento de recomeço, em parâmetros mais acertados dentro dos balizamentos da igualdade e de condições que permitam a edificação estrutural e funcional de uma sociedade civilizada. Os indicadores mostram uma oportunidade de revolução, a partir de um lugar, com exemplaridade suficiente para garantir um novo tempo, livrando lideranças, sobretudo, de populismos, mediocridades e de gosto por uma heroicidade que se assenta sobre a pequenez de interesses político-partidários.


O momento grita pela superação de contradições antigas, que travam o progresso, incapacitando ações e intervenções para sair dos fracassos, daqueles que aprendem lições em espírito comunitário e com sentido de pertencimento, pela lógica da fraternidade universal. A catástrofe no Rio Grande do Sul é página da história do Brasil, e suas urgências de reconstrução englobam o momento novo, em substituição a práticas obsoletas presentes em todo canto da nação, pela esperança de um novo Rio Grande Brasil. Razão e liberdade precisam ser administradas com galhardia, fecundadas pelo sentido nato de solidariedade no coração brasileiro, para uma nova ordem e uma nova economia, curando inteligências e corações por uma brasilidade mais qualificada.