Ary Quintella

Embaixador do Brasil na Malásia

Uma frase de Jorge Luis Borges resume o que poderia ser toda a experiência da vida. Segundo ele, o Buda nos ensina que uma das piores dores do mundo é “não estar com as pessoas de quem gostamos”. É a sina do diplomata deixar de acompanhar muitos momentos felizes ou tristes da família e dos amigos. Amigos e parentes casam-se, separam-se, mudam de emprego ou de profissão, prosperam ou decaem, morrem, seus filhos terão nascido e se casado também. O diplomata, porém, perderá muito disso.


O mais penoso é não estar por perto quando chega o momento da despedida. Escrevo isto, Samuel, na esperança de conseguir voltar a dormir, tentando me consolar da tristeza de não ter podido dizer adeus. Dói saber que já não conversaremos; dói saber que em seus últimos meses a doença esteve presente, visitante insidiosa; dói saber que sem sua companhia cativante, estimulante, a vida perderá tanto de seu encanto.


É muito triste não ter podido me despedir de você. Todas as coisas boas, porém, permanecerão para sempre. Três frases suas, que ouvi incessantemente ao longo dos anos, contribuem para pautar meu cotidiano profissional e pessoal. Você dizia: “A pessoa precisa ter a coragem das suas convicções”; “Quem quer trabalhar só das nove às cinco, de segunda a sexta, não deve ser diplomata”; e “Como Aristóteles dizia, a gratidão é algo raro na natureza”. Você vivia intensamente essas máximas. Nunca o vi ceder a pressões para que abandonasse algum princípio seu. No exercício do trabalho diplomático, você era incansável. Muitas vezes, vi você entristecido com alguma ingratidão, mas aceitando-a filosoficamente.


Pelas dimensões de seu território, sua população e sua economia, por sua enorme capacidade de articulação política regional e global, o Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial e está fadado a ser cada vez mais influente. Por mais que determinadas correntes de opinião desejem que o país permaneça condenado a uma posição periférica, esse não é o seu destino. Era assim que você pensava, essa era a sua convicção maior. O projeto de integração sul-americana, a soma de forças representada pelo Mercosul, que você ajudou a criar, são instrumentos regionais para a obtenção desse fim mais amplo, você explicava.


Outra preocupação sua: o papel que o diplomata deve desempenhar, no dia a dia, para corresponder à ambição legítima da sociedade brasileira de progresso econômico com justiça social e democracia efetiva, afluência interna e influência externa. Uma vez, você me escreveu ser nossa obrigação contribuir para a construção de um país justo, soberano e democrático. Isso se faz com estudo aprofundado dos temas, construção de redes de contato com interlocutores estrangeiros, divulgação insistente do peso real do Brasil, dedicação, patriotismo, trabalho cotidiano.


Vi, desde Kuala Lumpur, fotos e vídeos da cerimônia fúnebre que aconteceu no Itamaraty. Achei que a cerimônia foi, assim como você, digna e emocionante. Havia algo justo na presença do presidente Lula. Nunca, em duas décadas de convivência, vi você esmorecer na admiração e na confiança pelo Lula. Lá estavam Celso Amorim e Mauro Vieira – o qual, como chanceler, abriu as portas do Itamaraty para a cerimônia – em demonstração de amizade e lealdade, qualidades que, no seu coração, eram algo importantíssimo.


Outra de suas frases regulares era, ao pedir opinião sobre uma aula ministrada, um artigo em preparação, um livro a ser concluído: “Ary, todo mundo quer ser querido, todo mundo precisa de carinho. Seja moderado nas críticas, seja efusivo nos elogios”.


Por isso, dói pensar nas palavras que não falei. Por pudor, nunca lhe disse que você era grande amigo, mentor admirado e figura paterna. Mas não era necessário. Você sabia. Maria Maia e você são, para Eugênia e para mim, os amigos mais próximos, mais queridos. Já não haverá a ida ao seu restaurante predileto ou as sessões de cinema nos fins de semana, já não haverá as festas acolhedoras na sua casa, e você já não irá lá em casa jantar. Todas essas coisas, que formam uma amizade, não voltarão a acontecer. Agora, percebo que elas eram a essência mesmo da minha vida em Brasília.


Uma amizade de vinte anos cresce, muda, evolui. Nos seus últimos anos de vida, a relação não era mais como no começo, quando trabalhei com você na Secretaria-Geral do Itamaraty, durante quatro anos, em todo o primeiro mandato do presidente Lula. A amizade foi frutificando. Tanta coisa aconteceu desde 2003, que aqueles parecem tempos bem longínquos.


Eram, em todo caso, tempos bem difíceis. Prefiro não falar aqui da resistência, das injustiças, da incompreensão que você enfrentou na sua tarefa de apoiar transformações importantes na organização da carreira diplomática e na política externa brasileira. Você não aprovaria que eu fizesse isso. Não guardava rancores. Possuía o dom de perdoar.


Poucas horas depois de você ter partido na manhã de 29 de janeiro, já de noite aqui na Malásia, fiquei pensando como eu reagiria se me perguntassem como resumir a sua personalidade tão única. Eis o que eu diria:


Samuel Pinheiro Guimarães era um homem de rara inteligência, de enorme capacidade de trabalho, de grande brilho político e intelectual. Sua obra, na qual se destaca “Quinhentos Anos de Periferia”, é um marco no pensamento brasileiro, na medida em que formula de maneira sistemática, pela primeira vez, um arcabouço teórico genuinamente nacional sobre o que está em jogo nas relações entre os países. Pensador visionário e corajoso, grande patriota, homem que amava o Brasil como poucos e que, como poucos, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação. No plano pessoal, era um homem afetuoso, capaz de grande empatia, sentindo a dor alheia, mas também a alegria. Ele gostava do ser humano.


O seu desaparecimento cria um vácuo, para o Brasil e para quem o conhecia, que não pode ser preenchido.