O desenvolvimento da tecnologia, além de ampliar as fronteiras do nosso pensamento, trazendo possibilidades que antes da prensa, da eletricidade e da internet não existiam nem na imaginação, traz desafios na forma com a qual o Estado e as pessoas se relacionam, com implicações que merecem reflexão.


Uma das questões mais sensíveis diz respeito à relação entre poder e tecnologia. Exemplo: é inegável que os avanços tecnológicos tornam mais robusto o aparato estatal de combate à criminalidade, com ferramentas como a interceptação telefônica, rastreamento georreferenciado, biometrias e toda sorte de inovações, em um cenário de crescente digitalização dos meios de comunicação e troca.


Se por um lado tais mecanismos tornam mais profundas e sofisticadas as formas de intervenção do Estado, também abrem alas para mecanismos de controle mais efetivos do que quaisquer outros experimentados na história. Tratam-se das ferramentas de transparência.


Desde o acesso às contas públicas disponibilizadas na internet, que dão ciência às pessoas acerca de como é gasto nosso dinheiro, até as câmeras fixadas seja nas fardas, seja nas salas de audiências judiciais, é certo que a tecnologia permitiu não só o conhecimento das pessoas acerca do dia-a-dia desses órgãos que exercem funções estatais de poder, em grau mais ou menos lapidado, mas também gerou uma verdadeira mudança de paradigma no que se refere à forma com a qual nos relacionamos entre nós e com o Estado.


Para ilustrar com mais exemplos simples: existe um setor do Ifood destinado a fornecer a autoridades do Estado informações tais como endereço ou transações de qualquer pessoa registrada nessa plataforma, previsão que provavelmente consta no termo de adesão, mas que provavelmente as pessoas não imaginam que aderem quando estão pedindo uma pizza.


As torres de telefonia permitem o rastreamento de toda pessoa com um smartphone em tempo real e retrospectivo. A recente implementação do Pix e o iminente real digital (drex) transformaram o sistema de trocas, além de permitir o integral rastreamento do intercâmbio de valores.


O sistema de Justiça passa por diversas mudanças não só operacionais, mas que levantam indagações acerca dos próprios limites da intervenção estatal, sobretudo em um cenário em que há constante preocupação com o armazenamento e divulgação de dados pessoais e sensíveis, tanto por parte do Estado, quando por parte das grandes corporações, que hoje detêm mais poder econômico e político do que muitos Estados-nação.


Ao mesmo tempo, registra-se a redução drástica da letalidade policial no estado de São Paulo a partir da implantação de câmeras em fardas de policiais militares, que resultou na redução de mais de 60% das mortes entre os anos de 2019 e 2022, estatística essa inatingível para qualquer outra política pública. O salto de qualidade que esse tipo de tecnologia dá no que concerne ao controle do exercício do poder é imensurável.


Tal questão pode ser percebida também no que se refere às gravações e registros de audiências judiciais no Brasil, que revelam a todos da sociedade as circunstâncias e peculiaridades do exercício desse poder que se pretende racional, possibilitando assim um controle verdadeiramente popular até antes inimaginável.


Nesse contexto, a Defensoria Pública se mostra enquanto um órgão do sistema de justiça verdadeiramente vocacionado para fazer o árduo trabalho de buscar refletir sobre os limites do exercício do poder punitivo e persecutório do Estado. Isso pois, muito embora seja instituição pública, não tem atribuição de promover ou aplicar o poder punitivo, muito antes pelo contrário, resiste contra ele.


Dessa forma é a instituição que, por sua natureza, tem o condão de resguardar o ente mais fraco perante a imposição do poder do Estado, reflexão essa tão mais pertinente quanto mais esse poder se torna abrangente com os constantes avanços que nos circundam. Para tanto, é fundamental que as pessoas entendam o papel da Defensoria Pública nessa recente democracia que buscamos construir, promovendo a defesa daqueles que se vêem em situação de vulnerabilidade.


Assim como é importante que a tecnologia sirva para que as pessoas tenham acesso ao mecanismos que lhe possibilitem melhorar sua qualidade de vida, é certo que ao Estado deve caber tão somente ampliar suas margens de força e poder dentro das previsões legais e controles populares, razão pela qual é tão importante a atuação da Defensoria Pública salvaguardando os direitos dos entes mais vulneráveis e, em especial, o envolvimento da população, pois é o único capaz de efetivamente servir como instância de controle de todos os poderes. 

 

Bruno Demétrio

Defensor público, membro da Câmara de Estudos de Igualdade Étnico-Racial, de Gênero e de Diversidade Sexual da Defensoria Pública de Minas Gerais.