Elas perderam maridos e filho para a violência do Estado, mas não se calaram. Clarice Herzog, Eunice Paiva e Zuzu Angel transformaram o luto em coragem e o medo em denúncia. Meio século depois, seus nomes seguem como o verdadeiro rosto da resistência feminina à ditadura militar — aquelas que responderam, com dignidade, à pergunta que ecoa nos versos de Chico Buarque: “Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho?”
“Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho?” — perguntou Chico Buarque, em Angélica, canção escrita em memória da estilista Zuzu Angel, que transformou a dor da perda do filho em arte e denúncia. Meio século depois, a pergunta inspira este título — “Quem são essas mulheres?” — para reconhecer um trio que personifica a coragem civil durante a ditadura militar: Clarice Herzog, Eunice Paiva e Zuzu Angel.
Nas duas primeiras, os maridos — Vladimir Herzog e Rubens Paiva — foram assassinados pelo regime. Na terceira, o filho, Stuart. Em comum, todas escolheram enfrentar o medo com dignidade, desafiando o silêncio imposto pela repressão. E foi Clarice, cujo nome permanece nos versos de “O Bêbado e o Equilibrista”, quem se tornou o símbolo maior dessa resistência: a mulher que fez da verdade uma forma de amor ao país.
Clarice Herzog: a mulher que enfrentou o silêncio
Era fim de tarde em outubro de 1975 quando dois diretores da TV Cultura bateram à porta de Clarice Herzog. Levaram palavras hesitantes, olhares baixos, frases partidas. Antes que dissessem o essencial, ela gritou: “Mataram o Vlado!”. Naquele instante, Clarice compreendeu o que a versão oficial tentaria negar: o marido não havia se suicidado — fora assassinado sob tortura nas dependências do DOI-Codi de São Paulo.
Naquele dia começou uma história que mudaria o país.
Clarice recusou o exílio, recusou o silêncio e recusou a mentira. Criou dois filhos sozinha, em meio ao medo e à vigilância, e assumiu uma missão: provar a verdade sobre a morte de Vladimir Herzog. Quando seu chefe, de uma multinacional onde trabalhava, sugeriu que deixasse o Brasil, respondeu:
“Vou ficar aqui. Preciso provar a verdade para meus filhos.”
Foi uma batalha travada com o corpo e a alma. No enterro de Vlado, ela se jogou sobre o caixão, tentando impedir que fosse enterrado antes da chegada da sogra. Depois, enfrentou tribunais, ameaças, isolamento. Em 1978, obteve a sentença histórica do juiz Márcio José de Moraes, que reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte do jornalista — um ato de coragem sem precedentes em plena ditadura.
Pagou um preço alto. Perdeu amigos, teve crises de saúde e viu o filho mais velho adoecer de trauma e ansiedade. Mas nunca recuou. Décadas mais tarde, foi Clarice quem decidiu levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mesmo quando a família cogitava encerrar a luta.
“O caso do seu pai não é sobre nós. É sobre todos”, disse aos filhos.
Em 2018, o Brasil foi condenado por crimes de lesa-humanidade pela morte de Vladimir Herzog. E Clarice, testemunha de si mesma, cumpriu a missão que o amor e a justiça lhe impuseram.
Eunice Paiva: o luto que não teve corpo
Enquanto Clarice enfrentava o regime nos tribunais, Eunice Paiva vivia um luto sem fim. Em janeiro de 1971, o marido — o deputado cassado Rubens Paiva — foi levado de casa por agentes do Exército, no Rio de Janeiro, e jamais retornou. A versão oficial dizia que havia “fugido”, mas Eunice sabia que ele fora assassinado. Passou décadas cobrando respostas, buscando restos mortais, enfrentando a frieza dos gabinetes e o silêncio das Forças Armadas.
Mesmo sem corpo, nunca perdeu a dignidade. Criou cinco filhos, exerceu a advocacia, dedicou-se à defesa da democracia e à memória dos desaparecidos políticos. Eunice personificou a busca pela verdade num país que preferiu esquecer. Seu nome é lembrado não apenas pela dor, mas pela elegância com que transformou a ausência em insistência — e a saudade em justiça. Décadas depois, sua trajetória emocionaria o mundo com o filme Ainda Estou Aqui, baseado no livro de seu filho Marcelo Rubens Paiva, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025 — um reconhecimento que devolveu à história de Eunice o alcance e a reverência que o país lhe devia.
Zuzu Angel: a moda como denúncia
Zuzu Angel usava agulhas como armas. Estilista de talento reconhecido, viu o filho Stuart Angel Jones, militante do MR-8, ser preso e morto sob tortura em 1971. A partir daí, cada desfile tornou-se um protesto silencioso. Nas passarelas, substituiu tecidos leves por cores sombrias, estampas de anjos e pássaros enjaulados. A dor virou estética e a estética virou grito.
Procurou autoridades, enviou cartas ao exterior, denunciou o desaparecimento do filho à imprensa internacional. Foi amiga de Chico Buarque, que lhe dedicou versos na canção “Angélica”, perguntando:
“Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho?”
Zuzu morreu em um misterioso “acidente” de carro em 1976, que mais tarde se revelaria um atentado. Sua luta antecipou o que hoje chamamos de ativismo pela memória.
Clarice, Eunice e Zuzu representam uma geração de mulheres que enfrentou a ditadura de peito aberto, quando os homens haviam sido presos, mortos ou silenciados. Elas resistiram em nome da verdade, da justiça e da dignidade humana — e provaram que o heroísmo também tem rosto de mulher.
Cinquenta anos após a morte de Vladimir Herzog, a figura de Clarice permanece como símbolo dessa força coletiva. Sua história atravessa o tempo, inspirando filmes, livros e o instituto que leva o nome do marido. Mas mais do que isso, ela deixou uma lição: é possível amar o país mesmo quando ele parece ter se perdido de si.
As Clarices do Brasil
Quando Aldir Blanc e João Bosco escreveram “O Bêbado e o Equilibrista”, imaginaram que as “Marias e Clarices” choravam apenas pelos exilados e presos políticos. Hoje, sabemos que choravam também por todas as mulheres que transformaram a dor em coragem — as que esperaram, as que denunciaram, as que educaram, as que reconstruíram.
Porque, no fim, a anistia pode ter trazido o perdão, mas foram elas que trouxeram a verdade.
