Meio século depois, o Estado brasileiro reconheceu o crime e indenizou a família, mas não puniu os responsáveis. O caso continua a simbolizar o preço da impunidade

Enquanto Clarice Herzog enfrentava o silêncio, o jornalista Fernando Pacheco Jordão, amigo e colega de Vlado, ligava para Dom Paulo Arns: chorando, repetiu a mesma frase — “Mataram o Vlado.” O cardeal respondeu: “Talvez seja hora de um protesto mais forte. Talvez sair à rua”. Dali nasceu a ideia do ato ecumênico na Catedral da Sé, em homenagem ao jornalista e em repúdio à tortura.

No 31 de outubro de 1975, cerca de 8 mil pessoas lotaram a catedral e a praça. O cardeal Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright conduziram a cerimônia. A polícia cercou o centro, mas o ato manteve-se pacífico. Nenhuma palavra contra o regime foi dita; o silêncio coletivo foi mais eloquente que qualquer discurso. O Brasil inteiro entendeu a mensagem. As redações dos jornais paulistas ficaram vazia. Jornalistas foram à Sé.

A partir dali, o caso Herzog tornou-se símbolo da resistência civil.


A sentença que rompeu o medo


Em 1978, o juiz Márcio José de Moraes proferiu a sentença histórica que reconheceu a responsabilidade do Estado na morte de Herzog. Pela primeira vez, o Brasil admitia oficialmente uma execução sob tortura. Mas um ano depois veio a Lei da Anistia, de 1979, e com ela o véu do perdão. Torturadores e mandantes foram poupados em nome da “reconciliação nacional”.

Nos bastidores, o Inquérito Policial Militar serviu apenas para legitimar a farsa. O coronel Paes e dois carcereiros disseram que os presos usavam “roupas especiais”; ninguém perguntou se havia cintos. Um detento relatou os gritos; o procurador se recusou a registrar: “Ouvir é subjetivo”. Quando a mãe de Vlado confessou ter sentido vontade de morrer, o mesmo procurador ditou: “Sentiu vontade de suicidar-se também”.

O general Fernando Guimarães de Cerqueira Lima concluiu que o jornalista se matara exatamente como dizia o II Exército. E o comandante Ednardo D’Ávila Mello comemorou: “É a melhor resposta aos nazistas vermelhos”. Assim, Herzog foi assassinado pela segunda vez — agora nos autos.

Da Justiça nacional ao tribunal internacional

Quarenta anos depois, a família levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que em 2018 condenou o Brasil por crime de lesa-humanidade e exigiu investigação e punição. O Estado acatou parcialmente.

Em fevereiro de 2025, a Justiça Federal determinou o pagamento de pensão vitalícia de R$ 34,5 mil a Clarice Herzog. Em junho de 2025, a Advocacia-Geral da União firmou acordo com a família: indenização de cerca de R$ 3 milhões e manutenção da pensão. O governo reconheceu oficialmente a responsabilidade pela morte de Vladimir Herzog.

Ainda assim, nenhum torturador foi julgado. O processo penal segue paralisado pela interpretação de que a Lei da Anistia protege os agentes da repressão. O Supremo Tribunal Federal (STF) discute o tema há anos, pressionado por entidades de direitos humanos e pela própria Corte Interamericana.

O assassinato de Herzog teve um preço alto. Para a ditadura, custou reputação e legitimidade. Para o Brasil, custou décadas de silêncio. Hoje, o Estado paga a conta financeira — milhões em reparações —, mas ainda não quitou a dívida moral.

Clarice, em entrevistas, dizia o que mais doía: “Continuamos pagando as pensões dos assassinos”. O filho Ivo resumiria: “É uma ironia cruel — os criminosos que torturaram meu pai continuam recebendo do Estado que violentaram”.

Enquanto a Argentina condenou centenas de militares, o Brasil preferiu esquecer. Nenhum presidente civil, de Sarney a Lula, rompeu o pacto de impunidade. A ferida segue aberta.


O legado


Amanhã, o Instituto Vladimir Herzog e a Comissão Arns recriarão o ato da Sé. Dom Odilo Scherer, a reverenda Anita Wright, filha de James Wright, e o rabino Ruben Sternschein participarão, com o Coro Luther King e artistas convidados. Fernanda Montenegro lerá a carta de Zora Herzog, mãe de Vlado.

Quase meio século depois, o país ainda tenta encerrar a história. Mas talvez o último capítulo tenha sido escrito naquela tarde em que uma mulher percebeu, antes de todos, o que o regime queria esconder.

Clarice não sabia, mas seu grito atravessou por gerações:

“Mataram o Vlado.”

ELES ‘‘MATARAM’’ O vLADO

Carlos Alberto Brilhante Ustra Coronel do Exército e comandante do DOI-CODI de São Paulo. Chefiou o aparato de repressão e tortura da ditadura. Foi o primeiro militar brasileiro reconhecido judicialmente como torturador, em 2008.

Audir Santos Maciel Major do Exército, chefiava equipes de interrogatórios no DOI-CODI. Participou ativamente de sessões de tortura e prisões ilegais de opositores durante os anos mais duros da repressão.

Dirceu Gravina (“JC”) Delegado da Polícia Civil, atuou na Operação Bandeirantes e no DOI-CODI. É apontado por testemunhas como responsável por interrogatórios violentos e pela falsificação da versão de suicídio de Herzog.

Maurício Lopes Lima Capitão do Exército, integrava a equipe de interrogatórios do DOI-CODI. Segundo testemunhas, foi um dos executores diretos das torturas aplicadas em Vladimir Herzog nas horas que antecederam sua morte.

José Antonio Dias Gomes Médico legista do Instituto Médico-Legal de São Paulo. Coassinou o laudo de necropsia de Herzog, sustentando a versão falsa de suicídio e omitindo os sinais visíveis de tortura no corpo do jornalista.

Harry Shibata Diretor do Instituto Médico-Legal à época. Validou o laudo fraudulento que apontava “enforcamento” como causa da morte de Herzog, contribuindo para encobrir o assassinato político.

Antonio Carlos Fon Major do Exército e oficial de plantão no DOI-CODI no dia da morte de Herzog. Supervisionou a retirada do corpo e coordenou a encenação que buscou simular um suicídio dentro das celas.

João Benedito de Azevedo Marques Membro do Ministério Público Militar. Acompanhou o inquérito interno sobre o caso Herzog e foi acusado de omitir-se diante da manipulação de provas. Incluído na denúncia do MPF em 2020.

Todos os citados foram mencionados em relatórios oficiais da Comissão Nacional da Verdade (2014) e em denúncia do Ministério Público Federal (2020). Nenhum deles foi condenado, em razão da interpretação vigente da Lei da Anistia de 1979, que impede a punição de crimes da ditadura.

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