Cinco décadas após a morte de Vladimir Herzog nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, o país ainda não julgou os responsáveis. A trajetória da família, entre vitórias históricas, impunidade e resistência, expõe as feridas que a ditadura militar deixou abertas

Cinquenta anos após a morte de Vladimir Herzog nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, o país ainda não julgou os responsáveis. A trajetória da família — entre vitórias históricas, impunidade e resistência — expõe as feridas que a ditadura militar deixou abertas.

No fim de tarde de 25 de outubro de 1975, o ar em São Paulo parecia carregado de presságios. Clarice Herzog caminhava pela casa como quem tenta afastar um pensamento que insiste em voltar. Lá fora, o som distante dos carros misturava-se ao eco das notícias que corriam pelas redações. Quando bateram à sua porta, o tempo pareceu parar. Dois homens da TV Cultura — rostos tensos, vozes presas — traziam algo que não sabiam dizer. Sentaram-se na sala, olharam o chão, buscaram palavras que não vinham. Clarice, então, percebeu o que nenhum deles ousava pronunciar. E num grito que rasgou o silêncio e atravessou a história, disse apenas:“Mataram o Vlado”. O resto foi silêncio. Um silêncio que o país levaria décadas para romper.

Horas antes, o jornalista Vladimir Herzog, de 38 anos, diretor de jornalismo da TV Cultura, havia se apresentado voluntariamente ao DOI-Codi do II Exército, na rua Tutóia. Seu nome constava de uma lista de futuras prisões políticas. Ligado ao Partido Comunista Brasileiro, que rejeitava a luta armada, ele acreditava que nada tinha a esconder. Preferiu não fugir. Às oito da manhã, chegou ao prédio, foi obrigado a vestir o macacão dos presos e submetido a interrogatório.

Testemunhas ouviram gritos, o som da máquina de choques, ordens cortantes. Um rádio em volume alto tentava abafar a tortura. Às 11h25, o Serviço Nacional de Informações registrou que Herzog “confessara militância” e permanecia detido. Às 15h, tudo cessou. O silêncio que se seguiu foi o de uma morte já decidida.

Às 22h08, um novo telex chegou à Agência Central do SNI: “Informo que hoje, dia 25 out, cerca das 15 h, o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se no DOI/Codi/II Exército”. Era a versão oficial, forjada às pressas.

O fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, do Instituto de Criminalística, foi chamado para registrar o corpo. Na imagem que se tornaria ícone da farsa, o jornalista aparece pendurado por um cinto — que os macacões dos presos não possuíam —, os pés tocando o chão, os joelhos dobrados. Décadas depois, Vieira diria à Comissão da Verdade: “Achei estranha a posição dos pés, o controle de quem não deixava fotografar mais nada. Depois, percebi que era um homicídio.”

O DOI-Codi levou duas horas para acionar a perícia e mais de sete para comunicar a morte. Herzog era o 38º “suicida” oficial em dependências militares — o 18º por enforcamento. Reconstituições posteriores demonstraram que seria fisicamente impossível morrer daquela maneira. Tudo indicava tortura seguida de simulação de suicídio, expediente recorrente da repressão.

O luto que virou resistência

Clarice recusou-se a enterrar o marido às pressas, como queriam os militares. Quis o velório no Hospital Albert Einstein, exigiu ver o rosto de Vlado. Chegou a ameaçar levar o corpo para casa. Sob vigilância, o caixão fechado revelava apenas o rosto marcado. Na manhã de domingo, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns chegou ao local e foi advertido a “não falar”.

O rabino Henry Sobel, responsável pelo rito judaico, desafiou o regime: ordenou que o jornalista fosse enterrado no setor central do Cemitério Israelita do Butantã, reservado aos mortos comuns, e não na ala dos suicidas. Foi o primeiro gesto público de protesto contra a farsa oficial.

A cerimônia correu sob tensão. A mãe de Vlado perdeu o instante em que o caixão foi coberto. Quatro colegas de redação estavam presentes — um deles afastou-se chorando, repetindo: “Eles matam mesmo.”

Houve dois discursos breves. A atriz Ruth Escobar perguntou: “Até quando vamos enterrar nossos mortos em silêncio?”. E o jornalista Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, recitou versos de O Navio Negreiro:

“Senhor Deus dos desgraçados,
dizei-me vós, Senhor Deus,
se é mentira, se é verdade,
tanto horror perante os céus.”

Aquele domingo foi o nascimento de uma nova resistência. O luto de Clarice transformou-se em trincheira. O caso Herzog deixava de ser tragédia privada e passava a ser denúncia pública.

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