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Em "SUS: Uma biografia", médico e historiador se unem para mostrar as origens e bastidores do megassistema que universalizou o atendimento no país

crédito: Record/divulgação


Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde uma pandemia. Em janeiro de 2021, a enfermeira Mônica Calazans seria a primeira pessoa vacinada no Brasil contra o novo coronavírus, no que se tornaria uma campanha de imunização em massa que, apesar dos percalços, estancou a mortalidade pela doença no país. Este ano, a proteção contra a dengue também começa a chegar em nível nacional aos primeiros grupos. A aplicação gratuita dessas e de outras vacinas só é possível graças à capilaridade do Sistema Único de Saúde (SUS), com ramificações em 5.570 municípios brasileiros.

 

Com o objetivo de apresentar as bases que fundaram essa megaestrutura, baseada na Constituição Federal de 1988, o médico e professor aposentado da Universidade Federal Fluminense Luiz Antonio Santini e o jornalista e historiador Clóvis Bulcão se uniram para registrar o histórico da saúde em “SUS: Uma Biografia – Lutas e Conquistas da Sociedade Brasileira”.

 

“Ao longo da história do Brasil, a saúde sempre foi um problema, excluindo boa parte da sociedade. Pela primeira vez, pessoas de diferentes extratos ideológicos começaram a colocar um tijolinho. (...) (O SUS) É um avanço civilizatório do qual eu acho que brasileiro moderno não tem consciência, por conta dos problemas de financiamento”, afirma Bulcão, sobre o que inspirou a empreitada.

 

Após a Segunda Guerra Mundial a saúde passou a ser considerada “direito universal”, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, aponta o livro, que prossegue relatando o cenário que antecedeu a ideia que deu origem ao SUS.

 

Antes da Revolução Cubana, em 1959, foram criadas organizações com o objetivo de melhorar a questão de saúde nas Américas, como a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), em 1902, com o apoio de fundações americanas.

 

Após a Revolução Cubana, o governo dos EUA buscou financiar desenvolvimento social, criando anos depois “a formulação de políticas públicas de saúde” para países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Um projeto tocado com recursos provenientes de grandes empresas americanas, como a Kellogg’s, Ford, Rockfeller e outras, segundo a obra.


Pajés e curandeiros

 

Antes e durante boa parte da colonização portuguesa, apontam os autores, os grandes encarregados de tratamentos de saúde no Brasil eram pajés e curandeiros que faziam uso da flora local e do conhecimento empírico acumulado pelos povos originários ao longo do tempo. Apesar deste ser o tipo de tratamento mais comum à época, o sistema Santa Casa de Misericórdia surgiu em 1543, a partir de Santos, chegando depois a outras cidades, como Salvador (1549), Rio de Janeiro (1567) e Porto Alegre (1803).

 

O ensino da medicina começa em 1808 na capital baiana, sendo seguido pela capital fluminense em data muito próxima, por ordem de dom João VI, que chegou ao Brasil com a corte portuguesa para escapar do avanço das tropas de Napoleão Bonaparte sobre as terras lusitanas. Contudo, o avanço dos estudos médicos no Brasil eram lentos: apenas em 1938 foram abertas 12 faculdades de medicina no país. No período, se formou o médico Oswaldo Cruz, responsável pela vacinação que acabou culminando na Revolta da Vacina, mas que ajudou no avanço sanitário do país, lembram os autores.

 

Com o passar do tempo, diante de guerras, pandemia de gripe espanhola e convivência com diversas doenças, a saúde passou a ser o centro das discussões no Brasil. Foi neste cenário que alguns médicos que viriam a contribuir com surgimento do SUS – como Sérgio Arouca, Hésio Cordeiro, José Saraiva Felipe, José Temporão, José Carvalho de Noronha, José Luís Fiori, Reinaldo Guimarães e o próprio autor do livro, Luiz Antonio Santini – começaram buscar soluções para os problemas sanitários que afetavam a população.


Os militares e a saúde

 

Em 1964, com o golpe de Estado que derrubou João Goulart e levou os militares ao poder, o Brasil enfrentava uma escalada de mortes por doenças transmissíveis, alta taxa de mortalidade infantil e tinha 18 milhões com males como varíola, malária, mal de chagas e esquistossomose, em uma população de 82 milhões de pessoas.

 

“A questão das doenças transmissíveis não estava restrita aos rincões mais isolados ou mais pobres do país. Acossava as grandes metrópoles. Em fevereiro de 1969, foram instalados em Belo Horizonte nove pontos de vacinação contra o sarampo (...). Na entrada da década de 1970, o Brasil era o único país da América do Sul que continuava convivendo com surtos de varíola”, afirma Bulcão. Quando as enfermidades passaram a afetar a saúde de pessoas da alta sociedade, os militares passaram a encampar a questão sanitária como fundamental e, em 1973, por determinação do Ministério da Saúde foi criado o Programa Nacional de Imunização (PNI), visando combater varíola, rubéola e poliomielite.


Os comunistas e o Centrão

 

Três anos depois, médicos brasileiros, muitos deles ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), construíram o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Como inspiração, afirma a obra, tinham figuras como o médico, sociólogo e historiador argentino Juan César García; o médico e sanitarista italiano Giovanni Berlinguer e seu irmão Enrico, que foram políticos pelo Partido Comunista Italiano (PCI); o psiquiatra Franco Basaglia; e até mesmo o filósofo francês Michel Foucalt.

 

Revolução e desigualdade

 

Essa corrente buscava a aplicação de um sistema de saúde universal. Anos depois, com a redemocratização e a Assembleia Constituinte, em 1988, entre derrotas e vitórias, foi aprovada a criação do SUS. Um dos poucos parlamentares a se posicionarem contrários à proposta foi o ex-deputado federal Roberto Jefferson, preso recentemente por ter atirado contra policiais federais.
“O Centrão, na constituinte, comprou a ideia de se fazer o SUS. Figuras como Roberto Jefferson são contra, por achar que a saúde não tem nada a ver com o Estado, é uma questão privada”, relatou o historiador Clóvis Bulcão.


Na época, o deputado constituinte Eduardo Jorge afirmou que “a luta maior era pelo direito universal da saúde no Brasil, garantido por uma estrutura pública. Essa estrutura pública não significa ser estatal, mas combinando com os setores filantrópicos, de medicina lucrativa e pública. O fundamental era o universal, para todas e todos, para 100% dos brasileiros. Uma revolução no país mais desigual do mundo”

 

Na entrevista a seguir, os autores de “SUS: Uma Biografia” dão detalhes sobre essa revolução. Confira os principais trechos.


Como era o panorama da saúde antes do SUS e qual é a importância desse sistema no Brasil?
Luiz Antonio Santini: O Hospital Universitário Antônio Pedro (Huap), em Niterói, recebia uma demanda muito forte do interior do estado do Rio de Janeiro e muitas vezes atendia com dificuldade, precariedade. Isso me despertou. Eu era uma pessoa politicamente participativa, tinha participado de movimento estudantil, do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Isso me aproximou de movimentos que nos anos 1970 estavam se articulando na busca da melhoria de uma saúde pública no Brasil. Minha aproximação veio pelas dificuldades que, como médico do hospital universitário, encontrava no atendimento a população. (O objetivo do livro) foi contar a história de como o processo da medicina e da saúde pública no Brasil se desenvolveu.

 

Clóvis Bulcão: Antes do SUS, havia 40 milhões de brasileiros que, quando caíam doentes, não tinham acesso a nada.(...) Hoje, quando se anda pelas cidades brasileiras, é possível ver pessoas em situação de rua com próteses, grades de quem operou o fêmur, morador de rua que foi atendido numa UPA... Antes da Constituinte, essas pessoas chegariam ao pronto-socorro e não seriam atendidas.

 

O SUS é responsável pela aplicação de uma série de vacinas nas cidades brasileiras. Como foi a construção da ideia de imunização da população e como essa queda das taxas de imunização é vista hoje?
Bulcão: Quem criou o Plano Nacional de Imunizações (PNI), que agora está vacinando contra a dengue e vai retomar a vacina contra a gripe para idosos, foram os militares. Eles tinham consciência de que isso era importante. Foi um legado do governo militar. Quem tentou destruí-lo foi um governo em que se falava “meu exército”. (...) O PNI foi um orgulho do governo militar, que agora ficam questionando. Esses números (de vacinação) já vinham em queda, porque começaram a circular informações, e nós importamos essa ideia da Europa e dos Estados Unidos, de que a vacina do sarampo causa autismo. Brasileiro sempre gostou de se vacinar, tanto que se tem a expressão “vacina até na testa”.

 

Santini: Quando surgiram as vacinas para doenças preveníveis por imunização, o Brasil foi um país de sucesso nessa área. Foi um dos primeiros países a ter um programa nacional de imunização, conseguimos acabar com a poliomielite, sarampo, varíola, e isso foram programas desenvolvidos por muitos anos. (...) O risco disso é a interrupção. O risco de se reativar uma doença como essas, sobretudo nas populações mais novas. (...) As pessoas que não foram vacinadas são vulneráveis, e a doença pode se alastrar outra vez, como ocorria antes de haver vacinação.

 

O Brasil ainda tem uma grande concentração de médicos em grandes metrópoles. Qual a razão disso?
Bulcão: O Brasil sempre teve uma quantidade pequena de universidades de medicina, formava poucos médicos. Agora, o que a gente vê é um salto, você tem muito mais pessoas formadas. Mas quem está pagando R$ 12 mil ou R$ 13 mil numa faculdade privada não está interessado no programa Mais Médicos, quer ficar nos grandes centros atrás de recuperar o dinheiro que foi investido. Recentemente, tanto no Brasil, quanto em Minas Gerais, os governantes se posicionaram contrários à vacinação obrigatória. O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) repetiu reiteradas vezes que não iria se vacinar. Já o governador Romeu Zema (Novo) se mostrou favorável à desobrigação do cartão vacinal de crianças e adolescentes que se matriculem no ensino estadual esteja atualizado. Quais são os efeitos disso na população?

 

Santini: O governador de Minas está alinhado a um movimento internacional antivacina, que faz isso em nome da liberdade de escolha. A vacina é uma conquista da humanidade e, havendo evidências científicas de que produz resultados, e, neste caso, há, sobretudo na infância, como no caso da pandemia da COVID-19, que evitou a morte de muitas crianças, (esse movimento) é um absurdo, não faz o menor sentido. O pensamento anticientífico tem produzido verdadeiras catástrofes desnecessárias. A possibilidade do retorno de uma epidemia, de uma doença imunoprevenível, é uma atitude anticientífica, antidemocrática e é um risco social epidemiológico. Uma atitude dessas significa você reacender uma doença que já foi eliminada. No caso de Minas Gerais, que tem uma população muito grande, faz fronteiras com muitos estados, é passagem de brasileiros e é ponto de visitação, (essa postura) tem a possibilidade de contribuir negativamente para disseminação de uma epidemia. Estou falando de uma decisão política e tecnicamente equivocada

 

Bulcão: O Ministério Público deveria abrir queixa-crime contra todo gestor público que age a favor de patógenos serem espalhados. É fundamental combater essas pessoas com a lei. Além de seguir e incrementar as campanhas de vacinação.


Esse discurso antivacina pode ter impacto a longo prazo?
Santini: A cobertura da vacina para dengue já tem sido muito menor. Apesar de o Brasil não ter o número de vacinas necessárias para atender a toda população-alvo, que são as crianças, hoje em dia, o número das que têm sido vacinadas é menor que a quantidade de doses disponíveis. Essa campanha de desinformação que foi encampada até pelo Ministério da Saúde do governo Bolsonaro trouxe prejuízos que terão repercussões a longo prazo, justamente porque transforma uma questão científica de saúde pública em uma discussão ideológica. O governo Bolsonaro foi na contramão de tudo o que o Brasil conquistou historicamente. O maior alinhamento que o Bolsonaro tinha com a ditadura militar é na questão da repressão política, tortura.


Quais são os desafios e o futuro do SUS no Brasil?
Santini: O futuro (do SUS) é uma nova pactuação da sociedade brasileira com relação aos compromissos com a saúde pública. No Brasil, foi retomado o conceito da saúde como direito, e disso ninguém abre mão. A pandemia de COVID-19 ajudou a compreender isso. As pessoas entenderam que o problema de saúde pública, se não for tratado e articulado pelo poder público, há um risco muito grande. O Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema público de saúde universal. Isso é uma grande conquista, mas temos que avançar mais. Primeiro, um dos grandes desafios do sistema brasileiro é o subfinanciamento. Se comparado com outros países de mesmo nível de desenvolvimento da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o país investe menos da metade. Segundo, é preciso melhorar o processo organizativo, incluir na discussão as parcerias público-privadas. Terceiro, é necessário avançar nas pesquisas e na produção de insumos nacionais. Aumentar a capacidade de produzir o que o Brasil necessita, ao menos para as contingências, as crises da saúde pública e alimentares. Quarto, é a questão ambiental, que está associada a comportamentos, por exemplo o nível de obesidade da população brasileira que é muito grande e cresceu muito rapidamente.