Casar no civil e no religioso continua sendo tradição em Minas Gerais, mas o Censo 2022 mostra que a união entre duas pessoas e a formação de famílias está passando por mudanças. Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na última quarta (5/11), o estado é o primeiro no ranking brasileiro em que mais da metade (51,3%) das pessoas que vivem em união conjugal escolheram o “pacote completo” das duas cerimônias.

Só que o retrato das casas mineiras mudou: há menos casais com filhos, mais casais sem descendentes e um aumento discreto nas uniões consensuais, especialmente entre os mais jovens.

De acordo com o IBGE, outros 17,7% das pessoas unidas no estado escolheram se casar apenas no civil, enquanto 1,5% realizou somente a cerimônia religiosa. Já as uniões consensuais — quando o casal vive junto sem oficializar o relacionamento — representam 29,4%, a menor proporção do país.

Para Luciene Longo, demógrafa do IBGE, esse cenário reflete a força da religiosidade e dos costumes mineiros. “Minas é um estado mais conservador. O casamento formalizado ainda tem muito peso simbólico. A tradição e a religiosidade ajudam a explicar por que o estado mantém a maioria das uniões no civil e no religioso. Não é à toa que existe a expressão ‘tradicional família mineira'”, comenta.

Refletindo os laços fortes com a tradição, o interior confirma essa força cultural: dos dez municípios brasileiros com as maiores proporções de pessoas casadas nas duas cerimônias, oito são mineiros. Desterro do Melo, na Região Central, lidera com 79,8%, seguida por Tocos do Moji (78,6%), no Sul do estado.

Famílias menores e mais diversas

Se por um lado o casamento formal continua forte, por outro o tamanho e a composição das famílias mineiras estão mudando. Pela primeira vez, menos da metade dos lares de Minas (42%) é formada por casais com filhos — enquanto que em 2010 esse número era de 50,4%. Já os casais sem filhos cresceram de 17,1% para 24,1%, acompanhando a tendência nacional, onde o percentual subiu de 17,7% para 21,1%.

Para Luciene Longo, há várias razões para esse movimento. “Quando analisamos os casais sem filhos, encontramos diferentes fases da vida. Há jovens que adiam ou não desejam ter filhos e casais mais velhos que já os criaram. A queda da fecundidade e o envelhecimento populacional explicam boa parte desse fenômeno”, diz.

A demógrafa e professora no Departamento de Demografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raquel Coutinho, destaca que o movimento é social e cultural. “Essas transformações não são surpresa. Elas fazem parte da secularização da sociedade, em que as normas religiosas perdem força e as pessoas passam a decidir com mais autonomia. Hoje, ter filhos deixou de ser obrigação dentro do casamento e virou escolha”, explica.

Para Coutinho, o novo perfil das famílias está ligado também à ampliação das possibilidades de vida adulta. “Antes, ser adulto significava se casar e ter filhos. Agora, há outros caminhos legítimos, como construir uma carreira, viajar, ter projetos pessoais. O sentido de realização é mais individual e menos preso aos modelos tradicionais”, diz.

Nesse período, o percentual de famílias monoparentais — com um único genitor (mãe ou pai) é responsável pela criação e sustento dos filhos, sem a presença de um cônjuge — também aumentou. As casas chefiadas por mulheres passaram de 13,1% para 14,2% e, por homens, de 1,9% para 2,2%.

O peso da economia e da liberdade

A professora destaca que o contexto econômico atual também influencia essas decisões. “A instabilidade no mercado de trabalho e as incertezas financeiras fazem com que muitos adiem ou repensem a ideia de ter filhos. A autonomia das mulheres e o acesso a métodos contraceptivos também ampliaram o poder de escolha sobre a maternidade e a vida familiar”, pontua.

Casada há um ano e seis meses no civil, a publicitária Júlia Mariana Ribeiro Martins de Paiva, de 24 anos, ilustra essa realidade. “Ser mãe sempre foi um sonho pra mim, diferente do meu marido que foi construindo esse sonho comigo desde o início do nosso relacionamento. Não temos filho ainda por medo e buscando uma estabilidade financeira maior. A maternidade é assustadora, mas não acho que supere a beleza e amor que ela traz consigo, no mundo de hoje está muito difícil criar uma vida, mas queremos ter essa experiência de gerar uma vida, educar, amar e cuidar”, relata.

Já a jornalista Nattany Martins de Oliveira, de 31 anos, vive em união consensual há um ano e meio e decidiu não ter filhos. “Não quis ter filhos porque é uma escolha sem volta. Além disso, o peso da criação recai quase sempre sobre a mulher. Ter um filho exige preparo financeiro, emocional e uma rede de apoio. Não quis seguir essa obrigação social. Ter a opção de escolher é um privilégio, e eu quero usar esse poder de escolha. Muitas mulheres não tiveram essa opção. Na minha realidade, um filho significaria abrir mão da minha liberdade”, afirma.

Diferenças entre gerações e religiões

O Censo também mostrou que o tipo de união varia conforme a idade. Entre os jovens mineiros de 15 a 19 anos que vivem em união, 84,3% escolheram a união consensual. Já entre as pessoas de 45 a 49 anos, mais da metade (52,4%) se casou tanto no civil quanto no religioso. A proporção chega ao pico entre os idosos de 80 anos ou mais: 79,9% formalizaram as duas cerimônias.

Para Luciene Longo, essa diferença tem relação direta com fatores culturais e religiosos. “As uniões consensuais são mais comuns entre os jovens e entre pessoas sem religião. Já os evangélicos e católicos mantêm índices mais altos de casamento formal. Entre os evangélicos, o casamento civil e religioso tem um peso ainda maior. As crenças moldam o comportamento afetivo e familiar”, explica.

Mais solteiros, mais escolhas

Minas também se destacou por outro motivo: o aumento de pessoas solteiras. Sete municípios mineiros estão entre os 20 com mais moradores que nunca viveram em união conjugal. Presidente Kubitschek, na Região Central, ocupa o terceiro lugar no ranking, com 45% de sua população solteira. Em sexto lugar, com 42,8%, vem Jenipapo de Minas, no Vale do Jequitinhonha, e em nono lugar está Serro, também na Região Central, com 42,1%, seguido por Santo Antônio do Itambé, na Região Central com 41,6%.

Segundo Raquel Coutinho, esse crescimento acompanha uma mudança de valores. “Hoje é mais comum e aceito viver sozinho. As pessoas priorizam autonomia e bem-estar, e isso também é uma forma de família. A ideia de que é preciso casar para ser feliz está em transformação”, afirma.

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Entre tradição e mudança

Os dados do Censo 2022 mostram uma Minas em transformação: mesmo sendo o estado que mais formaliza casamentos no civil e no religioso no país, também cresce o espaço para casais sem filhos, uniões informais e pessoas que escolhem viver sozinhas. Coutinho reforça que "o conceito de família é mais plural. O importante é o vínculo afetivo, não o formato", finaliza. 

*Estagiária sob supervisão do subeditor Gabriel Felice

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