O padre Erivaldo Pereira aponta para a cópia, sem valor comercial, da coroa de ouro de Nossa Senhora da Conceição, que desapareceu da paróquia de Sabará  -  (crédito: RAMON LISBOA/EM/D.A PRESS)

O padre Erivaldo Pereira aponta para a cópia, sem valor comercial, da coroa de ouro de Nossa Senhora da Conceição, que desapareceu da paróquia de Sabará

crédito: RAMON LISBOA/EM/D.A PRESS

O recente furto de um rosário do século 19, objeto de fé que estava exposto no Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, na Região Central de Minas, mostra a audácia dos saqueadores, que agiram em plena luz do dia, e retrata a fragilidade do sistema de vigilância em equipamentos culturais e prédios históricos de Minas. Há 50 anos, no mesmo local, ocorreu o maior golpe contra o patrimônio sacro brasileiro: criminosos levaram 17 peças do museu localizado no subsolo da Basílica Nossa Senhora do Pilar, no Centro Histórico, joia barroca da primeira cidade do país reconhecida como Patrimônio Mundial pela Unesco.

“Parece que, em vez de museus, teremos que fazer cofres para trancafiar a história”, lamentou, em tom de desencanto, o diretor do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, Carlos José Aparecido de Oliveira, também integrante da Comissão de Bens Culturais da Arquidiocese de Mariana. As palavras ecoam em outras cidades, elevando a indignação dos defensores do patrimônio e remetendo a outros atentados contra os tesouros mineiros. “Roubo é um absurdo, ainda mais quando se trata de uma igreja, de um museu!”, diz Maria Dalila Dolabela Irrthum, priora da Ordem Terceira do Carmo de Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Sempre que se reúnem, os integrantes da irmandade fundada no século 18 rezam na Igreja Nossa Senhora do Carmo, no Centro Histórico de Sabará, pela volta de uma das imagens da padroeira, de 60 centímetros de altura, que foi furtada em 1995. Na cidade, outras peças centenárias desapareceram, incluindo a coroa de ouro de Nossa Senhora da Conceição. “Temos uma de prata, que fica guardada e só sai em ocasiões especiais”, explica o titular da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, padre Erivaldo Pereira Santos, enquanto aponta, sobre a cabeça da padroeira, no trono do templo barroco, o ornamento dourado sem valor comercial que hoje adorna a peça no dia a dia. Como forma de prevenção e proteção, a paróquia está concluindo o inventário de todo seu acervo.


MOBILIZAÇÃO POR PEÇA DE VALOR INESTIMÁVEL

Perda irreparável para a devoção popular e o acervo de Minas, um dos mais importantes em cultura e história do Brasil, o rosário em ouro e contas escuras levado de Ouro Preto se torna mais um número nas estatísticas. Conforme o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), 1,8 mil bens culturais estão desaparecidos de igrejas, capelas, museus e outros monumentos do estado. Pelos levantamentos, outros 688 bens foram resgatados em operações especiais, apreensões devoluções e outras ações.

Para tentar recuperar o rosário, entrou em ação uma força-tarefa formada pela Polícia Federal, Ministério Público em níveis estadual e federal e polícias Civil e Militar de Minas Gerais. As primeiras investigações mostram que o trio de suspeitos, flagrado pelas câmeras de segurança numa joalheria do Centro da cidade, pode ser de algum país da América Latina, pois falava espanhol. A suposta origem dos ladrões remete a um dado que indica o tamanho do estrago causado pelo crime contra o patrimônio cultural. A partir de 2019, alimentado pelo apetite voraz de colecionadores particulares, o preço das peças (bens culturais) disparou, com vendas mundiais ultrapassando US$ 64 bilhões.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco), o tráfico de bens culturais é o terceiro mercado ilícito que mais movimenta recursos financeiros no mundo, ficando atrás apenas da venda ilegal de drogas e armas. Conforme o FBI (sigla em inglês para Departamento Federal de Investigação), a soma dos recursos financeiros que o comércio ilegal de artes faz circular anualmente, no âmbito global, ultrapassa facilmente US$ 6 bilhões.


DILAPIDAÇÃO E OUSADIA NO ATAQUE A OURO PRETO

Da força-tarefa para investigar o furto do rosário ocorrido em Ouro Preto no último dia 10, às 13h18, participam, por parte do MPMG, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais, de Execução Penal, do Tribunal de Júri e da Auditoria Militar, que tem à frente o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda, e a Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC), liderada pelo promotor de Justiça Marcelo Azevedo Maffra. “O furto em Ouro Preto expõe a audácia dos bandidos, pois é cometido em plena luz do dia, em um museu com grande visitação, de uma cidade reconhecida como patrimônio mundial, que tem sistema de vigilância e monitoramento. Mesmo assim, os bandidos conseguiram cometer o furto sem dificuldade”, afirma Maffra.

O coordenador da CPPC/MPMG destaca que a maioria dos furtos em Minas ocorre nas pequenas cidades do interior, onde os prédios e templos históricos carecem de sistemas adequados de vigilância e monitoramento. “Por isso, a imensa maioria do patrimônio sacro já desapareceu dos locais de origem. Não há nenhuma dinâmica cinematográfica... Os furtos acontecem, às vezes, de forma silenciosa”, afirma Marcelo Maffra.

Essencial, portanto, seguir a orientação do coordenador da CPPC: “Nós, do MP de Minas, acreditamos que a sociedade é a melhor guardiã do seu patrimônio, pois está presente o tempo todo, de forma integral, nos 853 municípios de Minas Gerais. O poder público não é capaz, sozinho, de impedir a dilapidação do patrimônio cultural. Por isso, a plataforma Sondar é tão importante”.

O promotor de Justiça se refere ao Sistema de Resgate de Bens Culturais Desaparecidos (Sondar), plataforma digital que ganhou versão atualizada e foi desenvolvida em parceria do MPMG com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Lançado em 2021, o Sondar reúne informações sobre objetos mineiros desaparecidos, recuperados e restituídos, e pode ser acessado pela internet, por meio de computador, tablet ou celular. Encontra-se disponível um acervo de cerca de 2,5 mil bens culturais mineiros, como documentos e peças de arte sacra. Entre as novidades da ferramenta, está a possibilidade de a sociedade civil solicitar a inserção de um bem específico na base de dados do aplicativo, ainda que ele não tenha proteção como patrimônio cultural declarada por órgão público.
“O Sondar abre a possibilidade de a comunidade participar ativamente da vigilância dos bens culturais. Cada objeto tem sua singularidade, característica própria, não conseguimos substituí-lo por outro. E há o aspecto imaterial, que é a alma do patrimônio, pois, mais do que um corpo físico, são portadores de memória, identidade e referências do povo brasileiro”, diz Marcelo Maffra, alertando para a necessidade de prevenção constante aos furtos.