O Eternauta se tornou um fenômeno global na Netflix, alcançando o topo das séries mais assistidas em mais de 20 países. Estrelada por Ricardo Darín no papel de Juan Salvo, a produção argentina de seis episódios conquistou audiências na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e outros países latino-americanos. A série representa a primeira adaptação audiovisual da icônica graphic novel criada por Héctor Germán Oesterheld e ilustrada por Francisco Solano López em 1957, mas sua relevância transcende o entretenimento ao expor uma das histórias mais sombrias da América Latina.
Diferente da obra original que se passava nos anos 1960, a adaptação de Bruno Stagnaro transporta a narrativa para os dias atuais, mantendo a essência de resistência que caracteriza a obra. A história segue sobreviventes de uma nevasca tóxica mortal em Buenos Aires, mas por trás dessa ficção científica está uma realidade brutal que marcou para sempre a família de seu criador.
Por que a história de Oesterheld é considerada profética?
Elsa Sánchez, viúva de Oesterheld, declarou em 2011 que a obra-prima de seu marido era uma premonição do aniquilamento que sua família sofreria, em sintonia com a destruição que assolou a Argentina durante a ditadura militar. O paralelismo entre a invasão alienígena fictícia e a brutalidade real do regime militar argentino não é mera coincidência. Oesterheld havia se tornado militante dos Montoneros entre 1973 e 1974, junto com suas quatro filhas, transformando-se de escritor de aventuras em intelectual comprometido com a resistência.
Em 1976, ainda na clandestinidade, Oesterheld escreveu a segunda parte de O Eternauta, uma versão mais politizada que transformava o protagonista Juan Salvo em um herói disposto a sacrificar tudo pela luta contra os invasores. Esta versão funcionava como uma clara alegoria da resistência contra a ditadura militar que havia tomado o poder naquele mesmo ano.
Qual foi o destino trágico da família Oesterheld?
A partir de 1976, a família Oesterheld foi sistematicamente destruída pela ditadura militar argentina. Beatriz, a filha mais nova de apenas 19 anos, foi a primeira a desaparecer em junho de 1976, sendo a única cujo corpo foi recuperado. Diana, grávida de quatro meses e mãe de Fernando de um ano, foi sequestrada em San Miguel de Tucumán em agosto de 1976 junto com seu bebê, que foi abandonado como “NN” em uma casa de crianças.
Marina, também grávida, foi sequestrada junto com seu parceiro Alberto Oscar Seindus em novembro de 1976 em San Isidro. Estela, a mais velha aos 25 anos, foi morta em um tiroteio em dezembro de 1977 junto com seu parceiro Raúl Mórtola. Durante a ditadura militar argentina, estima-se que cerca de 500 bebês foram roubados de prisioneiras grávidas, que eram mantidas vivas até o parto e depois assassinadas.
Como a série reaviva a busca pelos netos desaparecidos?
Desde a estreia da série, o número de consultas às Abuelas de Plaza de Mayo por parte de argentinos que duvidam de sua identidade aumentou seis vezes na Argentina, e os relatos de possíveis roubos de bebês durante a ditadura triplicaram. A organização HIJOS (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio) aproveitou a oportunidade para pedir a qualquer pessoa nascida em novembro de 1976, ou entre novembro de 1977 e janeiro de 1978, que tenha dúvidas sobre sua identidade, que entre em contato com as Abuelas.
Dos quatro netos de Oesterheld, apenas dois sobreviveram: Martín (filho de Estela) foi entregue à avó Elsa pelos militares após a morte da mãe, e Fernando (filho de Diana) foi resgatado do orfanato pelos avós paternos. Elsa Sánchez de Oesterheld faleceu em 2015 após um infarto, mas antes de sua morte acreditava que os netos poderiam ser encontrados, esperando que eles soubessem “quem são e onde pertencem, suas origens, suas raízes”.