Acesso à informação pode reduzir resistências à reforma do Imposto de Renda, defende o economista -  (crédito: Joédson Alves/Agência Brasil)

Acesso à informação pode reduzir resistências à reforma do Imposto de Renda, defende o economista

crédito: Joédson Alves/Agência Brasil

Se qualquer um pode ver o salário de cada servidor público ou os valores recebidos por beneficiários do Bolsa Família – ambos nominalmente – no Portal da Transparência do governo federal, por que não é possível ver o quanto alguém está sendo isentado de pagar impostos, ou pelo menos saber a alíquota efetiva que um grande empresário ou um artista está pagando?

A provocação é do economista Pedro Fernando Nery, em seu novo livro Extremos: Um mapa para entender as desigualdades no Brasil, que chega às livrarias nesta terça-feira (16/4) pela Zahar/Companhia das Letras.

No livro, Nery visita oito destinos do Brasil que marcam extremos de desigualdade e discute reformas possíveis para mudar esse quadro.

"Por que o sigilo fiscal de alguém muito rico é tão mais valioso do que a privacidade de uma dona de casa na periferia de São Paulo, por exemplo?", questiona Nery, em entrevista à BBC News Brasil.

 

 

"Uma parte fundamental dessa questão da tributação da renda é conseguirmos aplicar os princípios da Lei de Acesso à Informação, que já vale para a despesa [direta do governo], também para a despesa indireta. Quer dizer, para todas as isenções e benefícios [tributários]."

Para o economista, ampliar o acesso à informação seria uma forma de reduzir resistências para a realização de reformas difíceis – como a aguardada reforma do Imposto de Renda (IR), que deve aumentar a taxação dos mais ricos, tornando o tributo mais progressivo (ou seja, fazendo quem tem mais pagar mais).

Em março, o governo adiou o envio da proposta de reforma do IR ao Congresso, gerando o temor de que ela possa ser deixada de lado.

Consultor legislativo do Senado de carreira, e atualmente diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República, trabalhando na equipe de Geraldo Alckmin, Nery considera o adiamento justificável, devido ao ano de eleições municipais e à necessidade de regulamentação da reforma tributária do consumo.

"Não podemos correr o risco de ter uma reforma da renda como aquela que foi discutida no Congresso no governo anterior, que estava, segundo muitos especialistas, saindo pior do que entrou", diz, citando a proposta de reforma apresentada pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes, que não prosperou.

Num momento em que o governo federal cancela eventos para rememorar os 60 anos do golpe de 1964 para não desagradar os militares, Nery defende uma outra reforma polêmica: a da Previdência das Forças Armadas.

"Gastamos com pensão de inatividade militar algo como R$ 50 bilhões por ano", diz.

"Se olharmos para o orçamento pré-pandemia do Bolsa Família, que estava ao redor de R$ 30 bilhões, vemos que gastávamos quase o dobro com proteção à renda das famílias militares, do que com proteção à renda das famílias pobres", argumenta.

Entusiasta da expansão do Bolsa Família – cujo orçamento chegou a inéditos R$ 170 bilhões em 2024 –, Nery acredita que é preciso agora dar o próximo passo.

 

Imposto de Renda: isenção para até dois salários mínimos avança no Senado

 

Ele defende a criação de um Benefício Universal Infantil, para todas as crianças do país, sejam elas ricas ou pobres.

O modelo tem sido tema de estudos diversos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) nos últimos anos, e é adotado em países que são exemplo de igualitarismo, como a Finlândia.

"A universalização faz sentido em um país como o Brasil, em que os mais ricos já recebem um benefício do governo, que é o benefício por dedução do Imposto de Renda", afirma.

"Estamos falando de um modelo em que os mais ricos não receberiam mais do que já recebem, mas grupos intermediários e pobres receberiam mais do que hoje."

Economista liberal de formação – doutrina que rejeita o intervencionismo do Estado na economia –, mas atualmente parte de um governo de esquerda, Nery acredita que a desigualdade é um tema que pode ajudar a criar consensos num país polarizado.

"No Brasil, temos uma tradição de ter um apoio multipartidário para esses temas", afirma.

"Veja, por exemplo, na ampliação do Bolsa Família ou no Auxílio Emergencial, que foram temas consensuais no Congresso, mesmo com toda a polarização."

Ele, no entanto, evita se posicionar no espectro político.

"Eu me acostumei tanto a trabalhar para esquerda e para a direita no Senado, e a ser xingado pelos dois lados quando eu era colunista no Estadão, que não me preocupo tanto com isso", desconversa.

"Dependendo do que eu escrevia no jornal, me chamavam de 'liberal planilheiro' ou de 'comunista maconheiro'. Então o que me motiva é olhar a ciência, a realidade, a experiência internacional e não pensar tanto em ideologia. Até porque, às vezes, isso divide mais do que conquista."

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Silhueta de homem segurando papéis em frente a uma tela mostrando o logotipo da Receita Federal e a imagem de um leão
Joédson Alves/Agência Brasil
Acesso à informação pode reduzir resistências à reforma do Imposto de Renda, defende o economista

BBC News Brasil - No seu livro, você conduz o leitor por oito locais do Brasil que marcam extremos de desigualdade e descreve-os como "lugares que tecnocratas como eu somente imaginam a partir de dados do IBGE". Qual desses oito locais que você visitou te impressionou mais e por quê?

Pedro Fernando Nery - O que mais me impressionou foi a realidade de Ipixuna [município no sudoeste do Amazonas, às margens do rio Juruá e ao sul do Vale do Javari].

É o lugar menos desenvolvido do Brasil, mas ele impressiona mesmo pelo isolamento geográfico. É um lugar de muito difícil acesso.

Ao mesmo tempo, temos falado tanto de mudança climática, de conservação, e acredito que ainda não amadurecemos o debate sobre trazer soluções viáveis para essas populações que moram no interior da Amazônia.

Algo que discuto no livro é a possibilidade de ampliar transferências de renda, que é algo que me parece mais factível do que tentar desenvolver alguma atividade econômica que seja compatível com a preservação da floresta, diante dessa escassez de infraestrutura.

Estamos falando de cidades que não estão ligadas por terra a nenhum outro lugar. Que só podem ser acessadas por rio ou pelo céu. E com dificuldades específicas para esse acesso em cada época do ano.

Então, penso que precisamos olhar com mais carinho e com mais realismo para essa realidade da pobreza na Amazônia.

Pedro Nery às margens do rio Juruá em Ipixuna, no Amazonas
Arquivo pessoal
'Precisamos olhar com mais carinho e realismo para a pobreza na Amazônia', diz Nery – na foto, durante viagem a Ipixuna, no Amazonas

BBC News Brasil - No livro, você enfatiza a solução da transferência de renda, do tipo Bolsa Floresta [atualmente "Guardiões da Floresta", programa do governo do Amazonas que paga R$ 100 por família para 15 mil famílias que moram em unidades de conservação]. Como compatibilizar isso com o desejo das pessoas que vivem na região amazônica de trabalhar?

Nery - Penso que a transferência de renda, além de aliviar a pobreza, fomenta o consumo e o próprio mercado local.

Mas acredito que tem talvez uma bola quicando aí, uma solução possível, que é investirmos mais em economia de serviços, que tem uma pegada ambiental baixa e não depende tanto de infraestrutura, de escoamento, quanto a indústria, o agro e a mineração.

Então acredito que essas novidades que estão surgindo em relação à telecomunicação, à internet, a Starlink [serviço de internet por satélite oferecido por empresa do bilionário Elon Musk], são soluções que temos que considerar.

Nas grandes cidades, o que queremos para os nossos filhos é que eles sejam médicos ou outras profissões ligadas ao setor de serviços.

Então acredito que podemos perder o que a gente chama no jargão de "fetiche da mercadoria" e pensar mais em economia de serviços como uma solução que compatibilize preservação ambiental e o desejo por inclusão produtiva que você mencionou.

BBC News Brasil - Ao longo da sua jornada, você apresenta uma série de reformas que podem tornar o Brasil mais igualitário, sendo a primeira delas a reforma do Imposto de Renda, que nos cálculos do Ipea pode gerar ganhos de até R$ 120 bilhões por ano. No entanto, em março, o governo federal decidiu adiar o envio dessa reforma ao Congresso. Como você avalia esse adiamento?

Nery - Acredito que o presidente Lula colocou de uma forma inequívoca, ainda nas eleições, o imperativo de colocar o pobre no Orçamento e o rico no Imposto de Renda.

Isso foi feito já no primeiro ano de governo, com a restrição a Juros sobre Capital Próprio [modalidade de distribuição de lucros que permitia às empresas pagar menos impostos], a taxação dos fundos fechados e offshore e a mudança de regras para letras de crédito.

Mas, de fato, ainda precisamos de uma reforma mais ampla da tributação da renda.

Por esse ser um ano de eleição municipal e ainda termos como prioridade a regulamentação da reforma tributária do consumo, através de projetos de lei complementar, me parece que o adiamento faz sentido.

Porque não podemos correr o risco de ter uma reforma da renda como aquela que foi discutida no Congresso no governo anterior, que estava, segundo muitos especialistas, saindo pior do que entrou.

Então acredito que, para chegar no Congresso com uma proposta mais madura, e também não tumultuar a regulamentação da reforma tributária do consumo, faz sentido o adiamento.

Mas acredito que há um compromisso muito claro do presidente, que fica evidente nesse slogan "pobre no Orçamento, rico no Imposto de Renda".

Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma Tributária, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad
Reuters
'Ainda precisamos de uma reforma mais ampla da tributação da renda', diz Nery. Na foto, o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad

BBC News Brasil - Mas há o risco de a reforma do Imposto de Renda não sair no governo atual? E como você vê essa possibilidade, seria algo muito ruim?

Nery - Eu sinceramente não vejo isso acontecendo e espero que não aconteça.

Claro que não tenho procuração para falar em nome do governo, mas acredito que existe um compromisso muito claro de trazer esse tema.

E, de fato, em termos de combate à desigualdade, [o governo] ficaria devendo [sem uma reforma do Imposto de Renda].

A gente teve uma ampliação importante do Bolsa Família nesse governo, que basicamente quintuplicou o orçamento, o que deve estar tendo um impacto intergeracional tremendo neste momento. Mas temos que lutar para conseguir olhar sim para o lado da arrecadação.

E eu penso que, por parte do próprio Parlamento, existe abertura para esse tema da tributação da renda. Se olharmos que já houve inclusive o envio de um projeto de reforma do IR] no governo anterior, com embates públicos do ministro [da Economia do governo Bolsonaro] Paulo Guedes.

Vemos que existe alguma convergência nesse ambiente tão polarizado quanto a essa necessidade de que os ricos paguem mais imposto.

BBC News Brasil - Ainda no tema da renda, no mês passado o economista francês Gabriel Zucman – um grande defensor da tributação de grandes riquezas – esteve no Brasil a convite do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A passagem dele pelo país causou burburinho entre economistas brasileiros, devido a um acordo fechado com a Receita Federal para acesso a dados para pesquisa. Qual a importância dos dados da Receita para os estudos sobre desigualdade e como você viu as críticas ao acordo entre o órgão e um pesquisador estrangeiro?

Nery - Os dados são fundamentais. Eu não conheço os detalhes desse acordo do professor Zucman com a Receita, mas algo que defendo no livro, que talvez até pareça radical para alguns leitores, é que deveríamos ter uma transparência muito maior dos dados da Receita.

E não digo isso só em relação a acadêmicos, digo em relação à sociedade civil como um todo.

Veja, se você entrar agora no Portal da Transparência, você vai encontrar [os dados de] uma mãe beneficiária do Bolsa Família lá.

Com um clique, você vê todos os valores que ela já recebeu, pode ver se o valor que ela recebe por dependente aumentou num determinado mês, o que indica que ela teve um novo filho.

E tem até um botão, que já aparece logo abaixo, que permite que você denuncie o possível recebimento ilegal do benefício, que às vezes foi de, sei lá, R$ 100.

Então, se eu consigo, em poucos segundos, saber quanto uma pessoa recebe de valores quase irrisórios do governo, eu deveria ter um tipo de transparência equivalente para a pessoa que recebe do governo valores muito maiores, mas recebe indiretamente por meio do sistema tributário.

Então uma provocação que faço no livro é que, se é possível ver a remuneração dos servidores públicos no Portal da Transparência, por que eu não posso ver o quanto alguém está sendo isentado de pagar impostos, ou pelo menos saber a alíquota efetiva que um grande empresário ou um artista está pagando?

Acho que isso fomentaria o debate e, em termos da lógica jurídica, não vejo muita diferença.

Por que o sigilo fiscal de alguém muito rico é tão mais valioso do que a privacidade de uma dona de casa na periferia de São Paulo, por exemplo?

Acredito que uma parte fundamental dessa questão da tributação da renda é conseguirmos aplicar os princípios da Lei de Acesso à Informação, que já vale para a despesa, também para a despesa indireta. Quer dizer, para todas as isenções e benefícios [tributários].

BBC News Brasil - Mas, especificamente sobre as críticas ao acordo Receita-Zucman, você acredita que os economistas brasileiros têm um ponto, de quererem também ter acesso a esses dados?

Nery - Francamente, acho que sim. Os pesquisadores brasileiros deveriam ter o mesmo nível de acesso que um pesquisador estrangeiro. Sem saber detalhes da polêmica, eu acho que isonomia faz todo sentido.

BBC News Brasil - Outra mudança defendida no livro é a continuidade da reforma da Previdência e você destaca particularmente que uma lacuna da reforma de 2019 diz respeito às Forças Armadas. Quais são hoje os principais problemas na Previdência dos militares e por que isso afeta a desigualdade do país?

Nery - Afeta porque consome uma parte muito relevante do gasto. Gastamos com pensão de inatividade militar algo como R$ 50 bilhões [por ano].

Se olharmos para o orçamento pré-pandemia do Bolsa Família, que estava ao redor de R$ 30 bilhões, vemos que gastávamos quase o dobro com proteção à renda das famílias militares, do que com proteção à renda das famílias pobres.

Então isso é uma questão já de desigualdade na apropriação dos recursos. E existe uma questão, acho que mais evidente, que é a desigualdade no acesso aos benefícios.

Temos a história da pensão por morte ficta, que é aquela quando o militar comete alguma transgressão, é expulso, e ele perde direito à pensão de aposentadoria.

Mas, se ele for casado, a mulher dele tem direito à pensão. Fica equiparada a expulsão à morte dele. Isso não existe em nenhum outro lugar.

Ou o próprio valor da pensão por morte para os servidores [militares].

Para o pessoal do INSS, temos aquele cálculo proporcional, que foi tão polêmico desde 2015, de 60% do benefício, mais 10% por dependente. Enquanto os militares continuam tendo 100%.

Então, esse é um caso em que vemos uma desigualdade mais evidente, um tratamento mais vantajoso [para os militares].

Militares de uniforme fotografados da cintura para baixo
Getty Images
Existe espaço no Parlamento para uma reforma da Previdência das Forças Armadas, diz Nery, se debate for feito 'com serenidade, sem desejo de revanche'

BBC News Brasil - E você vê espaço para uma reforma mais ampla da Previdência das Forças Armadas em algum futuro próximo, sendo que o governo federal desistiu até de promover cerimônias para rememorar os 60 anos do golpe de 1964 para não desagradar os militares?

Nery - Eu acredito que existe espaço no Parlamento, principalmente se fizermos esse debate com serenidade, sem nenhum desejo de revanche, nem nada assim.

Se olharmos para o que foi feito em 2019 na reforma [da Previdência] dos militares, algumas coisas boas foram feitas.

O tempo mínimo de serviço foi elevado, de 30 para 35 anos. Passou a haver tributação das pensionistas, que não existia.

A alíquota de contribuição foi aumentada em quase 30%. As idades de limite para aposentadoria em cada patente foram ampliadas.

Então acho que existe algum espaço para diálogo, para tratar desse sistema de uma maneira que seja justa e não como algum tipo de retaliação por uma associação maior de parte das Forças a um determinado grupo político.

Acredito que é uma questão que dá para ser olhada com tranquilidade.

BBC News Brasil - Você destacou que o Bolsa Família atingiu um orçamento sem precedentes neste terceiro governo Lula. São quase R$ 170 bilhões, ante cerca de R$ 30 bilhões antes da pandemia. Na sua avaliação, esse orçamento é sustentável à frente? E como conciliar esse valor já elevado com outras demandas, como o reajuste periódico do benefício pela inflação?

Nery - Eu acho que ele deveria ser sustentável e, por mim, poderia ser até maior.

Considerando que a despesa total [do governo] está em cerca de R$ 2 trilhões, estamos falando de um "Super Bolsa Família" que ainda não consome 10% do Orçamento federal e não consome nem 2% do PIB do país.

Então, para um programa tão discutido, que já foi tão polêmico, é importante trazermos essa realidade.

Agora, de fato a questão do desenho é um desafio. E é algo que eu discuto no livro, que deveríamos mirar numa proteção mais universal para a infância, caminhar no sentido de uma renda universal [infantil].

O governo tem feito ajustes importantes em combater aquele excesso que houve [no acesso ao Bolsa Família] no governo anterior, em relação às famílias unipessoais, formadas por uma só pessoa.

Mas penso que talvez devêssemos ser mais ambiciosos e ter um Bolsa Família para todas as crianças, um Benefício Universal Infantil, como tantos países desenvolvidos têm.

E como a gente poderia ter, principalmente quando levamos em conta que muitas crianças que não recebem Bolsa Família estão na metade mais pobre da população

Acho que é importante lembrarmos disso: ainda tem muita gente fora do Bolsa Família, frequentemente famílias que não são cronicamente pobres, mas que num mês está tudo bem, no próximo acontece uma tragédia ambiental, um acidente, uma doença, que podem jogar elas para a pobreza.

BBC News Brasil - Você pode explicar melhor o que é e como poderia funcionar esse Benefício Universal Infantil? Ele seria um substituto ao Bolsa Família ou algo que existiria em paralelo?

Nery - O Benefício Universal Infantil é uma ideia relativamente simples.

É a ideia de que toda criança merece proteção estatal, porque as famílias com crianças são mais vulneráveis à pobreza. Fundamentalmente, pela necessidade de ter um cuidador que vai estar, pelo menos parcialmente, fora do mercado de trabalho, ou com uma carga horária reduzida.

No mundo todo, famílias com crianças são mais vulneráveis à pobreza.

E a universalização faz sentido em um país como o Brasil, em que os mais ricos já recebem um benefício do governo, que é o benefício por dedução do Imposto de Renda.

Então estamos falando de um modelo em que os mais ricos não receberiam mais do que já recebem, mas grupos intermediários e pobres receberiam mais do que hoje.

E não vejo como uma substituição do Bolsa Família, é mais como uma ampliação. Não deixaríamos de proteger famílias sem crianças, mas priorizaríamos famílias com crianças.

Em muitos países é assim. Há uma assistência social em que as famílias com crianças recebem uma prioridade maior, sem que isso implique que não vá existir aposentadoria ou benefício para as famílias pobres sem crianças.

Crianças brincando em gira-gira em frente a edifícios de programa habitacional
Fernando Frazão/Agência Brasil
'Toda criança merece proteção estatal, porque as famílias com crianças são mais vulneráveis à pobreza', defende o economista

BBC News Brasil - Um estudo do Made-USP estima que o Novo Bolsa Família deve ter retirado quase 11 milhões da pobreza em 2023, uma redução sem precedentes. Mas esse mesmo estudo mostra que 71% dos ainda pobres são pretos e pardos. Me chamou a atenção que, no seu livro, apesar de mencionar bastante as desigualdades de gênero e raça, você se concentra em reformas para a totalidade da população e pouco em políticas específicas para os grupos vulnerabilizados. Isso é suficiente para reduzir a desigualdade racial, que talvez seja uma das mais graves do país?

Nery - Eu acredito que muitas políticas que são mais universais acabam atingindo mais a população parda e preta. Um exemplo é creche, outro é transferência de renda, como o Bolsa Família.

Então acredito que às vezes não é tão necessária uma política específica, porque os pretos e pardos correspondem à maior parte de um grupo vulnerável atingido por uma política mais universal, sem a gente ter a criação de algum estigma em relação a esse grupo.

Então a própria ideia do benefício da renda universal infantil é muito discutida nesses moldes – um benefício que é recebido por todos, embora tenha benefício maior sobre os mais pobres.

Será que isso não é melhor do ponto de vista da formação de uma coalizão política na sociedade capaz de garantir a sustentação e a ampliação desse benefício? E também no sentido de combater estigmas e preconceitos?

Então esse é um pouco da discussão que se coloca quando a gente propõe uma política pública que não é nominalmente voltada apenas para um grupo de maior desvantagem, sejam mulheres ou negros.

BBC News Brasil - Mas o fato de que, mesmo com todas as políticas que temos hoje, os pretos e pardos continuarem sobrerrepresentados na população mais pobre não sugere que talvez seja preciso mais? Que sejam necessárias políticas mais focadas?

Nery - A própria ampliação do Bolsa da Família atingiu muito mulheres, mães solo, pretos, pardos, jovens e crianças, sem a gente ter falado assim: "Olha, isso aqui é para a mulher negra". O Auxílio Emergencial, a mesma coisa.

De certa forma, isso foge um pouco da expertise [competência de especialista] dos economistas e vai mais para uma expertise de comunicação ou de política.

O auxílio emergencial, como o próprio Made-USP mostra, beneficiou majoritariamente mulheres negras, sem que isso tenha sido tanto levantado no debate e talvez, sinceramente, sem que o próprio governo anterior tenha percebido.

Então, acredito que é uma questão que, de certa forma, foge do meu conhecimento, se é melhor falarmos claramente sobre os grupos que mais se beneficiarão ou se, em busca de um consenso maior, a gente não toca necessariamente nessa questão.

Sinceramente, eu não sei.

BBC News Brasil - Muitas das reformas que você defende para reduzir a desigualdade são parte da agenda liberal clássica: reforma da Previdência, da administração pública, uma legislação trabalhista mais flexível. São agendas que são percebidas por parte da população como de perda de direitos. Muitas vezes, os liberais defendiam essas reformas com argumentos fiscalistas [de equilíbrio das contas públicas], que têm pouco apelo para a população em geral. Sua opção por apresentá-las como parte de uma agenda de combate à desigualdade é uma forma de tentar tornar essas reformas impopulares mais sexys?

Nery - Você tocou num ponto essencial. Um desejo que eu tenho é que, discutindo desigualdade, a gente consiga quebrar algumas polarizações e colocar a bola no chão.

Então, em alguns momentos do livro, eu imagino que eu esteja tentando convencer um leitor que é mais à direita. Por exemplo, quando eu falo de tributação da renda ou da importância da desigualdade para o crescimento do PIB.

Em outros momentos, eu sinto que estou tentando convencer mais um leitor à esquerda. Por exemplo, quando tento lembrar que, em muitos países, foram governos de esquerda que falaram de flexibilização ou de redução da tributação no mercado de trabalho.

Então uma coisa que eu queria é que esse não fosse um livro nichado. Nem só da esquerda, porque trata da desigualdade, nem da direita, porque fala de reformas liberais.

Eu queria que a gente olhasse mais para a ciência, para a experiência internacional, e fugisse um pouco dessa polarização, que é um pouco o meu background por ter trabalhado no Congresso [como assessor legislativo do Senado Federal].

Lá, de manhã você trabalha para um senador de esquerda, de tarde, para um senador de direita. E você vê que todo mundo tem vontade de acertar, de ter um país melhor e mais justo. Então eu acho que o livro tem essa característica.

BBC News Brasil - Então você acredita que a desigualdade pode ser um tema comum entre os dois lados do espectro político, pode ajudar a criar consensos, é isso?

Nery - Acho que sim. No Brasil, temos uma tradição de ter um apoio multipartidário para esses temas. Veja, por exemplo, na ampliação do Bolsa Família ou no Auxílio Emergencial, que foram temas consensuais no Congresso, mesmo com toda a polarização dos últimos anos.

Historicamente, há coisas que são até intrigantes. Por exemplo, o Fundo de Erradicação da Pobreza foi uma criação do ex-senador Antônio Carlos Magalhães, um bastião do PFL [hoje Democratas, um partido tradicionalmente de direita].

E se a gente olha a nossa Constituição, ela tem um compromisso muito claro com a erradicação da pobreza e redução das desigualdades.

Então acredito que existe espaço para explorar algum entendimento comum de que é importante reduzir a desigualdade.

Pode ser que cada reforma tenha divergências entre esquerda e direita, acho que isso é natural. Mas não podemos desistir de buscar a convergência, e eu penso que temos feito isso bem no Brasil nos últimos anos.

Basta lembrar que tivemos uma reforma do Imposto de Renda pautada pelo ministro Paulo Guedes. Temos o governo do presidente Lula mantendo reformas importantes feitas pelos governos Temer e Bolsonaro, como a da Previdência e a trabalhista.

Tivemos uma ampliação do Bolsa Família, primeiro como Auxílio Emergencial, depois como Auxílio Brasil, num governo cujo presidente repudiava o programa.

Há poucos anos, quando comecei a escrever o livro, lá em 2020, eu não imaginaria que a gente teria pautado a reforma do Imposto de Renda como está sendo feito.

Que a gente passaria uma reforma tributária, que o orçamento do Bolsa Família seria tão ampliado, tudo com maiorias largas no Congresso, e sem demonstrações muito grandes de resistência na sociedade.

Então a desigualdade no Brasil cai lentamente, mas existe espaço para otimismo e para uma convergência.

Paulo Guedes
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
'Existe espaço para explorar algum entendimento comum de que é importante reduzir a desigualdade', diz Nery. 'Basta lembrar que tivemos uma reforma do Imposto de Renda pautada pelo ministro Paulo Guedes'

BBC News Brasil - Nos últimos anos, temos visto cada vez mais economistas liberais tomando parte no debate nacional sobre desigualdade. Temos você, Armínio Fraga, Ricardo Paes de Barros e tantos outros tratando desse tema. Na sua avaliação, por que os liberais brasileiros têm se dedicado cada vez mais a essa pauta que talvez antes fosse percebida mais como uma agenda da esquerda?

Nery - É uma boa pergunta. Eu não sei, talvez por influência do debate externo que veio com o [economista francês Thomas] Piketty. Ou do debate americano.

Mas essa realmente é uma boa provocação, que eu não saberia responder.

Não sei também o quanto disso vem de termos superado outros temas. Quer dizer, sempre temos a preocupação fiscal, mas ela já não é tão grande quanto era alguns anos atrás, em que falávamos tanto de grau de investimento e outras coisas.

Mas você tem razão que existe um carinho maior pelo tema do que existia antes, talvez pelas próprias evidências que têm saído e que coloco também no livro, de que desigualdade importa para a democracia, importa para o crescimento econômico e por isso não pode ser considerada como algo alheio ao debate sobre consolidação da democracia ou sobre medidas para o crescimento econômico.

Armínio Fraga
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Armínio Fraga está entre liberais que têm discutido a questão da desigualdade, tema antes considerado mais como uma agenda de esquerda

BBC News Brasil - Em que lugar você se coloca no espectro político brasileiro, sendo um economista liberal, mas que trabalha atualmente para um governo do PT?

Nery - Eu me acostumei tanto a trabalhar para esquerda e para a direita no Senado, e a ser xingado pelos dois lados quando eu era colunista no Estadão, que não me preocupo tanto com isso.

De fato, eu participo de um governo que é de frente ampla, que vai da ministra Sônia Guajajara [do Ministério dos Povos Indígenas e do Psol] ao ministro André Fufuca [do Ministério do Esporte e filiado ao Progressistas], mas que é liderado pelo presidente Lula.

E participo com entusiasmo e com vontade de defender as medidas que estão sendo tomadas.

Mas, sinceramente, eu não saberia me colocar. Quando me perguntam isso, tem uma rima que eu gosto de dizer que é que, dependendo do que eu escrevia no jornal, me chamavam de "liberal planilheiro" ou de "comunista maconheiro".

Então o que me motiva mais é olhar a ciência, a realidade, a experiência internacional e não pensar tanto em ideologia. Até porque, às vezes, isso divide mais do que conquista.

BBC News Brasil - Estando dentro do governo, como você vê a queda de popularidade do presidente Lula, apesar do bom momento que vive a economia? Muitos analistas creditam isso à inflação de alimentos ainda resistente e que afeta particularmente os mais pobres. Você concorda com essa avaliação?

Nery - Eu não conheço essa avaliação. Mas outro dia estava vendo uma discussão sobre os Estados Unidos, que poderia ser importada para cá.

Porque parece que, tanto para os EUA, quanto para o Brasil, isso está acontecendo. É o que o pessoal chama de "good numbers and bad vibes" [bons números e más vibrações].

Você tem ali o presidente [Joe] Biden com um desemprego na mínima histórica para mulheres e negros, além da economia crescendo, e a inflação cadente. Mas tem um presidente em grave ameaça de perder sua reeleição.

E eu penso que esse é um tema que vai continuar sendo discutido também no Brasil nos próximos anos. Há uma divergência nos padrões históricos entre medidas de prosperidade econômica e medidas de popularidade.

O governo [Lula] tem desemprego baixo, inflação baixa. Como você mencionou, deve poder reportar em breve taxas historicamente baixas de pobreza e de extrema pobreza.

Mas uma certa polarização parece impedir que esses resultados tenham uma consequência em termos de popularidade como tinham no passado.

É um tema novo, que diz respeito também aos sociólogos e aos cientistas políticos, e que vai continuar nos interessando nos próximos anos.

Somos de uma geração que cresceu imaginando que a economia decidia a política e hoje parece que não é bem assim.

Lula e Biden
Ricardo Stuckert/Presidência da República
Popularidade em baixa, mesmo com bons resultados na economia, são fenômeno comum entre governo de Lula, no Brasil, e de Joe Biden, nos EUA, diz Nery

BBC News Brasil - Por fim, você termina seu livro – e desculpe desde já o spoiler para quem ainda não leu – num tom otimista, dizendo que "há caminhos para o nosso país". O que te leva a ser otimista?

Nery - Se olharmos com carinho para o que o Brasil conquistou, temos razão para ser otimistas. Nos últimos anos, temos falado muito sobre democracia.

Há setores da sociedade com um certo saudosismo do regime militar e que acreditam na ideia de que a democracia não traz crescimento econômico.

Mas reduzimos o analfabetismo em 80% sob a democracia. Dobramos os anos de estudo. A pobreza foi reduzida à metade e a extrema pobreza foi reduzida a um terço do que era.

A mortalidade infantil despencou, a expectativa de vida aumentou em dez anos.

Pensando do ponto de vista de um economista, se há dez anos alguém falasse que a gente teria feito reforma tributária, reforma da Previdência, modificações no mercado de trabalho, a super ampliação do Bolsa Família, eu acho que haveria ceticismo.

Então, mesmo quando eu vejo o que mudou desde quando eu comecei a escrever o livro – a mudança do Bolsa Família, os avanços na tributação da renda –, em pouco espaço de tempo, vejo que coisas mudaram.

Então eu vejo que, de uma forma que talvez não apreciemos sempre, e que talvez seja mais lenta do gostaríamos, a democracia tem trazido resultados positivos no combate à desigualdade.

O Brasil é um país melhor do que era antes. E eu acredito que essa é uma mensagem importante, não só para quem está no serviço público, trabalhando com política pública, mas para qualquer um quer se engajar, seja no terceiro setor, seja como eleitor, etc.

As coisas podem melhorar, elas têm melhorado. E quando olhamos com parcimônia os dados, com tranquilidade, vemos que, por trás dessa realidade que às vezes parece tão caótica, têm coisas muito boas acontecendo.