Uma vida dedicada ao Direito, na advocacia, desempenhada a bordo de um Fusca, percorrendo as comarcas do interior do estado do Rio de Janeiro, com a máquina de escrever no banco de trás. Uma vida dedicada à aplicação do Direito, na magistratura, desde a baixada fluminense, passando pelo Tribunal de Justiça e há 10 anos no Superior Tribunal de Justiça. Essa é a história profissional do entrevistado desta edição do D&J Minas, o ministro Antônio Saldanha Palheiro, um dos magistrados mais atuantes e queridos do Tribunal da Cidadania.
O Sr. ingressou sua carreira profissional como advogado em 1973, tendo exercido a advocacia por 15 anos até ingressar na magistratura em 1988. A advocacia atual é muito diferente daquela exercida na década de 70? Em que termos?
Realmente, em 1975, logo que me graduei, prestei concurso para a Shell e fui admitido como assessor jurídico. Pegamos uma área geográfica bastante grande e éramos três profissionais responsáveis por todo o contencioso do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Sergipe. E fazíamos aquela advocacia verdadeiramente artesanal, como era naquela época.
Com a máquina de escrever no carro, tínhamos que correr todas as comarcas, peticionar, despachar pessoalmente, fazer as audiências. Assim que funcionava. Era mais trabalhoso, uma advocacia mais densa, mais presencial, em que nós tínhamos que exercitar realmente todo o nosso conhecimento. Eu viajava por esse extenso território num Fusca, com a máquina de escrever no banco de trás, e ia percorrendo as comarcas. E despachava com os magistrados, quando conseguia. Quando não conseguia, deixava as petições prontas, protocolizadas e seguia a viagem. Na volta, ia apurando o resultado. E assim foi durante toda a minha advocacia plena. Num determinado momento, eu fui deslocado para a área de relações sindicais e negociações coletivas de trabalho. Negociei com sindicatos de petroleiros, químicos, metalúrgicos, mas aí então já vinculado à área de recursos humanos. Essa foi a minha vida na iniciativa privada, porque na área de recursos humanos é que se tratava tanto das relações individuais de trabalho, quanto das relações coletivas, que envolvia sindicatos, associações sindicais, até que fui aprovado no concurso para magistratura e assumi a comarca de São Pedro da Aldeia. A família certamente se ressentiu pela diferença de remuneração, além dos benefícios indiretos que a iniciativa privada proporcionava. Mas era o que eu queria e a família apoiou. E assim foi.
Quando o Sr. ingressou na magistratura, era assessor jurídico em uma grande empresa multinacional. O que o levou a abraçar a carreira de juiz de Direito?
Quando eu ingressei na magistratura, fui para uma comarca de juízo único. Aquilo, sim, foi efetivamente um grande aprendizado, eis que o juiz é instado a se pronunciar sobre todo tipo de matéria, desde falência, família, crime, contratos e tudo que surge de controvérsia no mundo jurídico. Foi um grande aprendizado, tendo ficado lá por quatro anos. De lá fui para a comarca de Nilópolis, uma vara exclusivamente criminal, onde foi um outro grande aprendizado, porque toda a minha formação, até então, era no Direito privado. Inclusive, o meu mestrado na PUC-RJ foi na área do Direito privado. Mas mergulhei nos estudos e ali comecei a aprofundar a investigação na matéria criminal e tudo que rodeia essa atividade. Fiquei em Nilópolis mais quatro anos, voltei para a capital e atuei em algumas varas da capital e fui chamado para a administração. Na administração, atuei como juiz auxiliar da corregedoria, juiz auxiliar da presidência e tudo que diz respeito a colaborar com os gestores do tribunal, corregedor e presidente. E, como desembargador, atuei em algumas comissões para aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.
O Sr. foi promovido, por merecimento, a desembargador do TJRJ em 2003 e, desde 2016, é ministro do Superior Tribunal de Justiça, onde é membro de uma das Turmas criminais. A matéria penal sempre foi sua preferida? Hoje no STJ continuamos com um grande volume de habeas corpus, a ponto de em 30 de abril de 2025 as Turmas Criminais do STJ terem totalizado 1 milhão de habeas corpus recebidos para julgamento. Qual é a média mensal de HCs? Isso impacta de que forma na função judicante e o que pode ser feito para reduzir tais impactos?
Quando saí de Nilópolis, atuei sempre na área de Direito privado, quando não estava na administração. Só que, quando eu fui para o Superior Tribunal de Justiça, a vaga disponível era na turma de Direito Penal. Lá fui eu, mais uma vez, estudei a matéria para enfrentar esses dilemas, esses dramas humanos que nos são apresentados na área penal. O grande problema hoje do Superior Tribunal de Justiça é o volume. Na verdade, até um mês e meio atrás, talvez dois meses, nós recebíamos cerca de 60 habeas corpus por dia. Neste mês de novembro, a distribuição já chegou a 100 habeas corpus, em um só dia para cada ministro. Então, isso é um drama, porque a gente tem que dar resposta, ainda mais a habeas corpus, que diz respeito à liberdade, prisão. Tem que dar uma resposta e com um volume desses, a gente dá a resposta possível procurando evitar equívocos, mas que acabam acontecendo com maior incidência quando você lida com números dessa magnitude. O ministro Herman Benjamin teve uma atitude muito sensível, de muita vanguarda, e ele disponibilizou para cada ministro da área criminal, da área penal, dez juízes de Direito para atuarem em auxílio, sem prejuízo da sua atuação jurisdicional no seu órgão de origem. Os juízes que assim se propuseram têm que cuidar das suas respectivas varas, de suas comarcas e prestar esse auxílio. O ministro Herman é muito sensível, mas também muito rigoroso em relação a isso, e exige um número mínimo de propostas, de decisões e coisas do gênero, que de qualquer maneira nós tínhamos que analisar. Foi uma grande iniciativa do ministro Herman Benjamin, porque os números caíram vertiginosamente.
Eu mesmo, quando começou esse projeto, tinha no meu acervo mais de 8 mil processos pendentes e não dava conta. Agora, quando essa força-tarefa foi direcionada para os setores das varas de competência do Direito privado e do Direito público, eu já estava com em torno de 1.300 processos no gabinete. É um drama, mas o habeas corpus é um direito constitucional e a advocacia já entendeu ou percebeu esse mecanismo mais célebre, que não tem maiores sofisticações de tratamento recursal. O habeas corpus entra a qualquer momento e a advocacia está usando, talvez com certa imoderação, os habeas corpus. E nós estamos tentando dar as respostas, mas é lógico, com um volume desses, os erros acabam surgindo, aumentam. Não tem muito o que fazer. É trabalhar, enfrentar e fazemos apelos constantes para que os advogados sejam mais moderados em relação a esse tipo de mecanismo jurídico para fazer valer os seus direitos. Mas, como sempre, o habeas corpus diz respeito à liberdade, a gente acaba tendo que enfrentar, não havendo muito o que fazer. Alguns segmentos da advocacia na área penal, hoje em dia, inclusive abriram mão dos recursos convencionais estabelecidos no Código de Processo Penal, para se valerem apenas e tão somente do habeas corpus. Exatamente pela velocidade e pela informalidade na sua infiltração. Isso cria uma verdadeira enxurrada de habeas corpus que a gente tem que analisar. Estamos usando o mecanismo do julgamento virtual e tudo aquilo que é possível, mas boa parte deles, a parte requer que seja levada ao julgamento presencial. E quando existe pertinência, destacamos para ser inserido na pauta presencial.
Uma das discussões mais importantes atuais é a necessidade de se cumprir a Constituição, que exige seja assegurada a saúde plena aos cidadãos e, ao mesmo tempo, a limitação orçamentária e o risco de colapso com a transferência, para os planos de saúde, de todos os tipos de tratamento e procedimentos que o poder público não pode assegurar. Qual a posição mais recente do STJ a respeito?
Em relação à questão da saúde, realmente é uma preocupação extremada, a gente vive um dilema bastante acentuado, porque embora a Constituição assegure, numa normativa abstrata, o direito universal e integral à saúde, com o que concordamos, pois sabemos que o direito universal à saúde é pertinente e que devemos, todos, ser tratados iguais, seja no hospital público, seja no hospital particular. Essa é a universalidade. A integralidade já traz um questionamento, porque o que se contempla como saúde integral depende da expectativa de cada um, do que a pessoa entenda como sendo seu direito à saúde, como sendo a integralidade para o seu bem-estar físico ou emocional. E essa é uma dicotomia difícil de superar, porque, evidentemente, não existem recursos, acho que em lugar nenhum do mundo, para se prestar a chamada saúde integral dentro da perspectiva individual de cada um, de cada segurado, de cada um do povo, do que ele entende que deva ser prestado para que ele possa se considerar uma pessoa plenamente saudável. É uma equação muito difícil de resolver, porque a expectativa é ilimitada, mas os recursos são limitados. Então, a gente tem que navegar nesta turbulência para tentar prestar, ao menos, o que se considera essencial para o bem-estar. Agora, os casos limítrofes são sempre muito difíceis de você equacionar. Nos casos, por exemplo, que exigem medicamentos de altíssimo custo e casos individuais que custam milhões de reais. Nós entendemos que se trata de uma expectativa bastante legítima de quem precisa dessa prestação. Mas a gente tem que verificar a possibilidade de se entregar aquilo que que é possível dentro da limitação orçamentária. E isso, muitas vezes, ou a maioria das vezes, causa uma frustração. Por outro lado, a saúde suplementar, que é prestada pelas seguradoras, pelas empresas de prestação de saúde, hoje atendem a uma parcela muito grande, muito significativa da população, mais especificamente um quarto dos brasileiros. Hoje são 52 milhões de segurados na saúde pública, na saúde suplementar e que mostram que não podemos abrir mão desse segmento tão importante da sociedade que auxilia na prestação de serviços de saúde. Imagina se a saúde suplementar for suprimida, a migração de 52 milhões de cidadãos para o SUS (Sistema de Saúde Pública), que certamente vai gerar um colapso da saúde como um todo. Então, essa equação é bastante tormentosa e eu vejo com muita felicidade que o Supremo Tribunal Federal está se debruçando sobre o tema com profundidade, com um olhar absolutamente realista, para tentar equacionar, estabelecer parâmetros, os limites de atuação, particularmente da magistratura. Porque o magistrado é chamado a se pronunciar e nós temos a obrigação de nos manifestarmos sobre qualquer tema controvertido que nos é apresentado. Não podemos simplesmente dizer isso eu não julgo, tem que julgar. E os assuntos são apresentados e o magistrado tem que proferir uma decisão. O que pode, o que não pode, o que deve, o que não deve. E isso realmente é uma situação de muita angústia, muito tormento para o juiz, que não tem formação médica e com base nos preceitos jurídicos, particularmente constitucionais, ele tentar fixar o que é justo e o que é injusto. Esse é o grande dilema da saúde hoje. O Superior Tribunal de Justiça tem feito um trabalho bastante profícuo, bastante concentrado em matéria de saúde, e também vive esse mesmo dilema. Mas como a questão é constitucional, creio eu que a decisão final a respeito efetivamente vai ter que passar pelo Supremo Tribunal Federal, que, por sua vez, não está se omitindo. Está enfrentando a matéria, enfrentando de uma forma bastante responsável, tentando equacionar e equilibrar a possibilidade e a necessidade.
O Anuário da Segurança Pública de 2025 traz levantamento que mostra um crescimento de 408% dos crimes virtuais em 2024. Foram 2.166.552 estelionatos usando meios eletrônicos naquele ano, o que corresponde a 4 golpes por minuto. Uma das justificativas apuradas pelo Anuário para esse aumento é a “baixa capacidade do sistema de justiça de processar esses crimes”. Como o Sr. enxerga esse aumento dos chamados crimes cibernéticos e o que fazer para combatê-los? Falta capacidade ao sistema de justiça para esse enfrentamento?
Os crimes que mais nos preocupam, exatamente pelo acentuado crescimento que se tem verificado, são os crimes virtuais. Na verdade, esses mecanismos cibernéticos hoje são uma realidade em todos os segmentos da sociedade, para o bem e para o mal. Na área médica, temos a grande evolução das cirurgias robóticas e os exames de imagem com o auxílio intenso e muito efetivo da inteligência artificial, que é o lado positivo. Mas temos também as fraudes crescendo vertiginosamente com a utilização desses mesmos mecanismos que foram criados não para essa finalidade, mas que o criminoso acaba dele se valendo para obter suas vantagens ilícitas. Os crimes virtuais são uma realidade que temos uma grande dificuldade de enfrentar, porque nesse tema o criminoso acaba ficando sempre à frente da investigação e da repressão. Quando se consegue desbaratar um determinado mecanismo de atuação pelos meios virtuais, os criminosos já encontraram outros meandros, outros caminhos para fraudar o sistema como um todo. A gente está enfrentando e estudando e, mais uma vez, o Superior Tribunal de Justiça está implantando a inteligência artificial para fazer frente a toda essa situação extremamente grave e com a qual não sabemos, ainda, muito bem como lidar, porque o crime virtual é um crime que se comete de dentro de casa, na tela de um computador, e a localização fica sempre difícil. Temos verdadeiros experts que não estão atuando de forma adequada, eis que se valem de seus conhecimentos e os utilizam para o cometimento de fraudes de toda a natureza, sejam fraudes processuais, sejam fraudes na área médica, sejam fraudes no sistema bancário. E é uma realidade que a gente vai ter que enfrentar e tentar aprimorar perseguindo, de verdade, aquilo que a gente não identificou ainda.
Ainda em relação aos crimes cibernéticos, a OAB tem levantado uma bandeira contra os chamados falsos advogados que, utilizando-se das redes sociais, tentam aplicar todo tipo de golpe. O STJ já foi instado a se manifestar a respeito? Qual conselho o Sr. dá para os leitores em relação a tais tentativas?
A Ordem dos Advogados do Brasil tem realmente manifestado uma preocupação muito intensa, muito séria em relação à atuação de advogados de uma forma pouco ética, pouco nobre, no cometimento desses delitos. Nós, do STJ, não fomos, ainda, chamados a nos manifestar especificamente em relação a essas questões. Esperamos que a própria entidade de classe, que é uma instituição de muita respeitabilidade, muita responsabilidade, possa inibir que isso aconteça no próprio nascedouro dos seus quadros, porque a gente acaba tendo que atuar a posteriori. Nós atuamos quando o assunto já está transformado num procedimento civil ou criminal. Esse é o cenário que nós estamos vivenciando. Vamos continuar trabalhando para tentar inibir, mas o problema é que o Judiciário não é órgão de repressão. O juiz não reprime crime, o juiz não combate crime. O juiz julga o fato posto e as provas apresentadas. Isso seria uma atribuição mais compatível com as responsabilidades das polícias, civil, federal, Polícia Investigativa e Ministério Público, que têm que efetivamente tentar apurar para inibir antes que eles se transformem num crime já posto. E, aí sim, nós vamos ser chamados a atuar, mas com assuntos já convertidos numa ação penal, com prejuízo já configurado e as pessoas já prejudicadas, portanto, em outro patamar.
O Sr. completa 75 anos em abril de 2026, ano em que completa, também, 10 anos de STJ. Quais são seus planos para pós-aposentadoria ?
Realmente eu me aposento em abril de 2026 e fico triste por um lado, porque é uma atividade que eu gosto de exercer. Eu gosto efetivamente de exercer a magistratura. Mas, por outro lado, abrem-se novos campos. Me sinto ainda com saúde física e mental para continuar trabalhando. Não me vejo parado, não tenho essa vertente. E eu vou continuar a minha caminhada, possivelmente na advocacia, na academia. Exerço uma atividade acadêmica bastante intensa na Fundação Getúlio Vargas, da qual gosto muito, eis que é uma instituição que me traz muito prazer, muita alegria, particularmente na chamada FGV Conhecimento, onde existe um segmento chamado FGV Justiça, que é exatamente de atuação acadêmica na área jurídica, em situações complexas, inovadoras, nas quais pretendo continuar a atuar. E certamente sem descartar a advocacia, que foi onde comecei e foi a minha primeira paixão. E sempre é tempo de retomar.
