Com formação clássica em piano, João Ventura teve a ideia do show enquanto preparava seu doutorado sobre o contraponto musical -  (crédito: Marco Antônio/Divulgação)

Com formação clássica em piano, João Ventura teve a ideia do show enquanto preparava seu doutorado sobre o contraponto musical

crédito: Marco Antônio/Divulgação

Pode parecer loucura. Mas quem disse que o desatino é incompatível com o belo, quando se sabe que a insensatez já originou engenhosas ideias e criações artísticas, campo que, por essência, desafia o senso comum e a ordem preestabelecida?

O pianista, cantor e compositor sergipano João Ventura, de 38 anos, desenvolveu o aparentemente tresloucado projeto Contraponto, no qual canta canções da música popular brasileira, ao mesmo tempo em que toca, no piano, peças da música erudita.

Na voz – e nas mãos – de Ventura, o samba “Retalhos de cetim”, de Benito di Paula, é interpretado simultaneamente a “Rondo alla turca”, de Mozart. “Desde que o samba é samba”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, se mistura ao “Noturno nº 2”, de Chopin. E “Insensatez”, da dupla Tom e Vinicius, faz dueto com a “Sonata ao luar”, de Beethoven.

Até Reginaldo Rossi entrou na brincadeira. “Garçom” foi gravada junto de “O voo do besouro”, do russo Rimsky-Korsakov. Não se trata, contudo, de um pot-pourri ou medley, como estamos acostumados a ouvir, em que os músicos adaptam as canções para executá-las de uma única vez, em uma só faixa. No caso de Ventura, são duas obras sobrepostas, apresentadas na íntegra, sem mudanças nas harmonias, melodias ou andamento.

É esse repertório que Ventura traz para sua apresentação desta quinta-feira (1º/2), no Clube de Jazz do Café com Letras. Na sexta-feira (2/2), ele volta ao local, com um show diferente, tendo como repertório canções de Chico Buarque.


NOÇÃO DE SUPERIORIDADE

Embora a formação acadêmica de Ventura tenha sido em música erudita – ele fez o bacharelado e o mestrado em piano erudito; e o doutorado foi sobre o contraponto, que mescla o erudito com o popular –, o músico nunca se conformou com a distinção feita por artistas e professores entre os dois campos.

“Se você analisa o próprio termo erudito, ele alude à erudição, ao conhecimento”, diz Ventura. “Por si só, é um termo que carrega uma noção de superioridade. Mas eu nunca vi dessa forma. Sempre fui um cara que gostou dessas duas vertentes e que não conseguia enxergá-las como diferentes”, acrescenta.

Por não ver essa diferença, conta Ventura, a obra de Reginaldo Rossi sempre foi tão valiosa para ele quanto a de Chopin. “Comecei, então, a ter na minha cabeça uma visão muito pessoal sobre isso, na qual todas as manifestações artísticas eram tratadas com muita horizontalidade.”

A combinação das obras numa mesma interpretação, entretanto, ocorreu por acaso, há aproximadamente 10 anos. Ventura estudava a peça “Libertango”, de Astor Piazzolla, e, quando terminou a introdução, começou a cantarolar “Espumas ao vento”, de José Accioly Cavalcanti Neto (que ganhou popularidade nas vozes de Flávio José e Fagner). Naquele momento, o artista não conseguiu dar continuidade à execução simultânea das duas obras, mas, ao observar a semelhança entre elas, passou a procurar identificar outras peças eruditas que se assemelhavam a canções populares.

Foi assim que descobriu que “Retalhos de cetim” ‘casava’ com “Ronda alla turca”, assim como “Insensatez” fazia par com “Sonata ao luar” e “Garçom” tinha em “O voo do besouro” uma espécie de contraparte.

“No caso de ‘Desde que o samba é samba’, foi uma amiga minha que reparou a semelhança com o ‘Noturno (nº 2)’, de Chopin”, conta.


TRIBUTO A CHICO BUARQUE

Sobre Chico Buarque, cujo repertório ele interpreta na sexta, o pianista afirma: “A primeira coisa que me atrai nele é a poesia. Acho que Chico Buarque tem uma grande habilidade de ser, em suas músicas, muito profundo e muito palpável. Além de ter uma questão imagética também que acho fantástica. Muitas músicas dele são como filmes, você consegue ver a cena, ver o que está acontecendo”.

Há ainda a harmonia e a melodia intrinsecamente ligadas à história, como observa o sergipano. “Se você pegar ‘Beatriz’, por exemplo, a nota mais aguda traz a palavra céu e a nota mais grave traz a palavra chão. Isso é um exemplo claro de como ele se preocupa em encaixar a palavra à melodia, em fazer esse jogo que, talvez, ninguém perceba, mas que ache maravilhosamente lindo sem entender o porquê”, aponta.

Montar um tributo a Chico Buarque foi um verdadeiro desafio para Ventura. O primeiro esboço do repertório contava com 112 canções, algo completamente inviável. Ele não cita as canções que permaneceram, mas comenta que o carioca “tem essa veia política, assim como a do amante e a do cara que escreve para o teatro”.

Diante disso, ele tentou “fazer um apanhado de todos os estilos dele. Tentei fazer o show recheado de vários momentos desse artista que, para mim, é o maior da música popular brasileira”.


CONVITE DE MADONNA

A combinação inusitada que João Ventura criou no projeto Contraponto chamou a atenção de Madonna, que o convidou para acompanhá-la no MET Gala, a famosa noite de gala do Metropolitan Museum of Art de Nova York, em 2018. Na ocasião, Ventura criou os contrapontos “Let it be”, dos Beatles, acompanhado de “Ave Maria”, de Gounod; e “Hallellujah”, de Leonard Cohen, misturada com “Pour Elise”, de Beethoven. Outros projetos com a diva pop chegaram a ser aventados, mas não foram levados adiante.