Remontagem da peça

Remontagem da peça "Sortilégio – Mistério negro", clássico da dramaturgia brasileira, relembra a luta do movimento negro no país

crédito: Daniela Paoliello/divulgação

Márcia Maria Cruz
Especial para o EM

Às 12h30 de 11 de novembro, Yá, Emanuel, Ogum, Oxum, Oyá, Exu e o violeiro subiram ao palco do teatro de Inhotim, em Brumadinho. Vestiam roupas coloridas, com predominância do vermelho, amarelo e azul, e óculos escuros com armações igualmente coloridas, dando toque afrofuturista às vestimentas.

Yá faz consulta a Ifá sobre o futuro de Emanuel. Entre dois amores, uma mulher branca e outra negra, o herói vive a saga de um homem negro nos primeiros anos pós-abolição.

Cada passo e decisão de Emanuel são acompanhados de perto pelos orixás Ogum, Oxum, Oyá e Exu. A saga se desenrola a partir de uma pergunta que interpelava Abdias Nascimento no início do século 20, mas ainda é muito atual: a cor da pele determina o destino?

A peça “Sortilégio – Mistério negro” deu início ao quarto ato do projeto Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra (MAN), parceria de Inhotim e Ipeafro desenvolvida desde dezembro de 2021.

Dividido em oito núcleos, o novo ato conta a trajetória de Abdias como poeta, dramaturgo, ator, escritor, artista e político a partir do conceito de quilombismo. Conta também com obras de Tunga, Diego Rivera e Heitor dos Prazeres, entre outros artistas.

A concepção de “Sortilégio” é de Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944. Na remontagem, a atriz e mestra da culinária mineira Zora Santos interpreta Yá; Reibatuque vive Emanuel; Elisa de Sena, Ogum; Iasmin Alice, Oxum; Michelle Sá, Oyá; Camilo Gan, Exu; e Heberte Almeida, o violeiro. Ficaram lotadas as duas sessões de estreia do texto clássico da dramaturgia que remete à luta do movimento negro no Brasil.

O diretor Adyr Assumpção assina concepção, adaptação e direção da peça escrita em 1951. Devido à censura, ela só foi apresentada em 21 de agosto de 1957, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O elenco reunia o próprio Abdias, Léa Garcia e Helba Nogueira.

Pela beleza do texto, a remontagem vale por si, ganhando ainda mais relevo por dar início ao “Quarto ato – O quilombismo: Documentos de uma militância pan-africanista”, que teve como eixo o orixá da justiça, Xangô. Nada mais simbólico, pois o teatro foi o primeiro campo das artes a que Abdias se dedicou no TEN, de 1944 a 1968. Em 1950, propôs o Museu de Arte Negra, que reunia tanto a produção própria como de outros artistas negros.

Os outros segmentos do projeto, em cartaz, são “Primeiro Ato: Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra”; “Segundo ato: Dramas para negros e prólogo para brancos”, abarcando a trajetória do TEN e a concepção inicial da coleção do MAN de 1941 a 1968, ano em que Abdias iniciou seu exílio nos Estados Unidos e na Nigéria; e “Terceiro ato: Sortilégio”, com obras de Abdias e de Mestre Didi, Rubem Valentim, Melvin Edwards, Regina Vater, Emanoel Araujo, Hélio Oiticica e Anna Bella Geiger.

“Oxum, representado no belíssimo amarelo dos painéis, regeu o primeiro ato. O segundo ato foi regido por Oxóssi. O terceiro por Exu”, explica Elisa Nascimento Larkin, presidente do Ipeafro.

Ao iniciar a entrevista coletiva na véspera da abertura do quarto ato, Elisa puxou o canto para Xangô. “Aqui estamos na regência de Xangô e trago este ponto de Xangô, do nosso compositor Abigail Moura, fundador da Orquestra Afro-brasileira”, disse.

As exposições “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, na Galeria Lago, e “O mundo é o teatro do homem, na Galeria Fonte, apresentam um panorama da produção de cerca de 30 artistas negros e coletivos, como Arjan Martins, Desali, Eustáquio Neves, Paulo Nazareth, Rosana Paulino. Esta exposição, ligada ao “Segundo ato”, foi marcada pela polêmica com o artista Maxwell Alexandre, que pediu a retirada de sua obra às vésperas da abertura.

“Nos últimos dois anos, Inhotim abriu, ainda que tardiamente, uma frente de pensamento e reflexão com a aquisição de um número significativo de obras de artistas negros. Essas aquisições agora constituem uma parte relevante da coleção e, com isso, demandam mudança das narrativas que a instituição constrói ao redor do seu acervo”, afirma o Inhotim, por meio de nota.


As flechas de Luana

Para abrir os atos, foram convidados autores negros que despontam na arte contemporânea. Luana Vitra, proeminente e jovem artista de Contagem, criou “Giro” para o quarto ato.

Luana trabalha terra, cobre e argila. As flechas, elementos presentes em outros trabalhos da artista, vêm desta vez apontadas para cima. A artista desenha sobre camadas de pinturas da cerâmica e também cria desenhos com pregos nas paredes. Os desenhos fazem referência a paisagens mineiras.

“O meu gesto é o desenho sobre a cerâmica, a cerâmica como uma plataforma de giro. O desenho pode extrapolar a forma do papel. Organizo o desenho a partir do giro”, diz ela.

“Isso se iniciou com a série que fiz a partir do rompimento da barragem aqui em Brumadinho, quando estava investigando o processo de desaparecimento da paisagem”, revela

Luana pontua que há duas formas de a paisagem desaparecer: “De maneira natural, desaparece no azul. A outra maneira de desaparecer artificialmente é a dor que Minas Gerais carrega ao ver seus relevos se tornarem sulcos. Esta é uma terra cheia de buracos, uma terra cheia de ausências, uma terra que é transportada”, completa.

PROJETO ABDIAS NASCIMENTO
“Quarto Ato – O quilombismo: Documentos de uma militância pan-africanista”, na Galeria Mata, até abril de 2024. “Giro”, de Luana Vitra, na Galeria Marcenaria. Inhotim (Rua B, Brumadinho) funciona de quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30; sábado, domingo e feriados, das 9h30 às 17h30. R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia-entrada). Entrada franca às quartas, mediante retirada prévia de ingressos na plataforma Sympla.