Ele nasceu há 100 anos na Alemanha, fugiu de lá perseguido pelo nazismo. Acolhido como cidadão norte-americano, serviu como soldado na 2ª Guerra Mundial e voltou ao país que o expulsou para ocupá-lo com as forças aliadas. A fascinante, polêmica e verdadeiramente ativa vida do diplomata Henry Kissinger terminou quinta-feira passada em Connecticut, EUA. E como ele sempre previu, e até ajudou a torná-lo assim, com o mundo em permanente desordem e desarmonia entre povos e nações.

Kissinger recebeu o mais contestado e precipitado Prêmio Nobel da Paz por uma guerra que não tinha acabado. Dividiu com o Comitê Norueguês, que o concede, o constrangimento internacional de ver Le Duc Tho não aceitar a honraria, único indicado até hoje a recusar o prêmio. O líder vietnamita considerou incompletos e insuficientes os Acordos de Paris que previam terminar a guerra e restaurar a paz no Vietnã.

Secretário de Estado, Embaixador, aconselhador, formal e informal de presidentes norte-americanos por mais de 70 anos, tinha uma visão da ordem internacional muito própria, convergente para um lado, divergente para outro. Na América Latina deixa triste memória por admitir, justificar ou não deter aliados rudes, adeptos de convulsões sociais e conflitos violentos, execução de opositores e desestabilização de governos constitucionalmente eleitos como ocorreu no Brasil, Chile e Argentina. O que não o impedia de aproximar os EUA da China e conseguir tratados de controle para limitar a produção de armas nucleares com a União Soviética.

Estadista de um mundo que sempre faz vista grossa a bagunça de países amigos, tentava equilibrar interesses militares de segurança pelas armas e o discurso de não negligenciar a importância de promover governos democráticos e comprometidos com os direitos humanos. Kissinger foi um equilibrista fenomenal. Sua balança diante de acontecimentos terríveis derivados de catástrofes políticas nacionais pendia sempre mais para a intervenção do que para o diálogo. Com o tempo, passou a formular atitudes mais recomendáveis para consolidar a inequívoca liderança mundial dos EUA. Usava expressões como “projeto moral americano” para definir como fundamental à tradição ocidental apoiar o sistema eleitoral livre e combater o comunismo. Inventou uma combinação de realismo e idealismo, convencendo aos políticos e acadêmicos de seu país que o debate americano seria mais aceito no mundo se estes dois elementos não fossem vistos como opostos e incompatíveis.

Deu opinião sobre tudo como um dos mais prestigiados consultores políticos do mundo. Inclusive ajudou na contratação de Pelé pelo Cosmos de Nova York para ajudar na propaganda do futebol de origem inglesa nos EUA. Se meteu no Oriente Médio, buscou explicar a mentalidade teocrática e estadista islâmica, as razões de Israel, a questão palestina, a noção de ordem do Irã, Síria e das monarquias árabes. Ajudou a formular a multiplicidade das concepções de poder e influência na Ásia, do Japão, Índia, Coréia e China. Admirador da Europa e sua democracia pluralista e escudo militar como maior aliado dos EUA no mundo, dava mais atenção às guerras entre Estados do que a vida das pessoas comuns. Até que a violência não estatal de grupos civis, paramilitares e terrorismo alertou às potências atômicas que a realidade venceu a teoria. E que dispor de meios de destruição total não é suficiente para fundar uma nova ordem mundial, partilhada e compreensível.

A ilusão de Henry Kissinger de que os Estados Unidos cumpririam seu papel geopolítico, econômico e cultural imperativo e incontestável não se tornou realidade. Não é possível traduzir culturas divergentes num sistema comum. Aliás, nenhum país do mundo conseguirá resumir todos os outros. As estruturas regionais, culturas próprias, nacionalismos, preconceitos e exageros diversos não permitiram a criação de valores universais respeitados por todos onde as populações civis tenham direitos não violados. Uma ordem jurídica unilateral não se sustenta, uma multilateral não se afirmou por mais que se tente.

É impossível saber qual o resultado e as consequências dos atos pensados e impensados de governantes e estadistas. Esta é a maior lição e regra da história humana. Henry Kissinger, tendo vivido por tanto tempo, atravessando o século com poder e influência, é bem uma pequena exceção dentre aqueles que não viram o mal ou o bem que fizeram ao mundo. O que ele fez, ele viu. E como assumiu a prevalência de suas ações sobre tantos fatos mundiais, que tenha ido em paz com sua consciência acertar as contas com o Deus de todos nós.