Eu tive a satisfação de participar do podcast Diversifique, da Fundação Dom Cabral, discutindo a pouca representatividade de lideranças LGBTI+ nas empresas. Eu e Filipe Abitan, diretor de negócios de capital humano da United Health Group, fomos entrevistados pelo analista de Diversidade e Inclusão Leonardo D’Assumpção. Achei a conversa tão interessante que decidi transcrever aqui uma boa parte da discussão.

Leonardo D’Assumpção: Para falarmos em LGBTI+fobia, nós temos que trazer um recorte dessa realidade nada animadora da comunidade LGBTI+ aqui no Brasil. Ao mesmo tempo em que nós estamos avançando em termos de direitos civis, somos também o país que mais mata pessoas LGBTI+ no mundo. Gostaria de chamar o Léo Drummond para trazer para nós um overview da realidade nada animadora dessa comunidade.



Léo Drummond: Para iniciar a conversa, tenho dois pontos. O primeiro é nada animador mesmo: a nossa comunidade LGBTI+ ainda enfrenta muitos desafios, muitos obstáculos e problemas sérios no ambiente de trabalho. O segundo ponto já é um pouco mais animador: a nossa situação já está melhor ou menos pior do que foi antes. Ainda não está bom, temos muito a melhorar e avançar, mas como uma pessoa com visão positiva que sou, eu acredito que estamos em uma melhora crescente na sociedade. Às vezes damos um passo para trás, mas voltamos a dar dois passos para frente. O cenário hoje está melhor do que foi décadas atrás. Antes a gente não poderia casar, não havia leis antiLGBTI+fobia. O que precisamos é acelerar esse movimento por equidade, por que não é justo que estejamos melhorando em alguns aspectos e ainda assim sofrendo preconceito, discriminação e assédio.

Para falarmos sobre a população LGBTI+ no mercado de trabalho, temos dados de uma pesquisa de 2022 realizada pela consultoria Great Place To Work que informa que 10% das colaboradoras e colaboradores das empresas se identificam como LGBTI+. Porém, essas pessoas estão na base das organizações. Quando vamos observar como elas sobem hierarquicamente, como encaminham as suas carreiras, nós percebemos que essa porcentagem diminui. Então as pessoas LGBTI+ muitas vezes conseguem empregos, mas têm menos oportunidades de crescimento profissional. Este problema é sério e nos faz questionar o motivo de isso acontecer. Por que nos faltam oportunidades? O que está gerando essa pirâmide que nos deixa somente na base?

Outra questão importante é o porquê das organizações serem o “último armário”. Por que as pessoas LGBTI+ não se sentem à vontade para falar sobre quem são e viverem de forma autêntica no ambiente de trabalho? Isso impacta a (falta de) noção de pertencimento, não se sentir à vontade para ser você mesmo naquele ambiente e com aquelas pessoas que fazem parte do seu cotidiano.

Algumas pessoas podem estar pensando “isso é uma questão pessoal, não é algo que preciso levar para o ambiente de trabalho”. Não é bem assim, por que as pessoas heterossexuais e cisgênero se assumem e reafirmam suas identidades e orientações no ambiente de trabalho o tempo inteiro. Por exemplo: um homem heterossexual e cisgênero pode comentar sem grandes problemas que vai passar as próximas férias com a esposa e a filha na praia. Alguém pode falar que esteve em um restaurante, e uma mulher cisgênero heterossexual pode comentar que já esteve lá com o namorado. Essas pessoas estão se assumindo heterossexuais em conversas cotidianas, sem precisar falar “oi, tenho uma grande revelação a fazer!”. Só que nós, pessoas LGBTI+, em conversas cotidianas, se não sentirmos que o ambiente é seguro para nos assumirmos, damos apenas uma risadinha e não participamos do papo, ou até mesmo inventamos um relacionamento heterossexual, mudamos o gênero da pessoa com quem nos relacionamos, e isso é um peso grande, é desconfortável e pode gerar até adoecimentos.

Leonardo D’Assumpção: Fazendo um gancho com uma fala sua sobre o armário. Estamos aqui, três homens gays, e eu acho que passamos por três armários na vida. O primeiro é a família, o segundo que podemos identificar como a escola e a universidade, e o último armário é o mundo corporativo. Eu gostaria de ouvir do Filipe sobre como foi a experiência de sair do armário.

Filipe Abitan: Quando você fala sobre os armários, isso me remete à minha vida inteira. Toda a nossa comunidade LGBTI+ se esconde em algum momento e aprendemos isso desde a nossa infância. O nosso primeiro preconceito é o nosso com nós mesmos. À medida em que você consegue lidar com isso melhor, você se assume para a família. Eu vivi isso, somente aos 15 anos eu trouxe isso para minha família e não foi muito fácil. Também passei por todos os outros armários, como o da escola, e também foi muito doloroso porque recebi muito preconceito, em uma época em que não se falava em diversidade, há 20, 30 anos. Nós éramos taxados e apelidados, e esse preconceito continua no ambiente corporativo. Eu tive o privilégio de trabalhar com pessoas que me acolheram, mas também vivi cenas de preconceito verbalizado e escancarado, mas que na época ainda não era crime.

Isso, obviamente, impacta a nossa autoestima, a autoconfiança, a saúde mental. A informação de que 10% das colaboradoras e colaboradores das empresas se identificam como LGBTI+ indica uma dificuldade maior por trás, que é a autodeclaração. Por mais que se diga que é um dado confidencial, as pessoas têm medo de se autodeclarar. Outro dado assustador é o de que apenas 0,1% das pessoas trans estão no meio acadêmico. A nossa comunidade é impactada até mesmo nos acessos ao conhecimento. Eu, no meu privilégio, sofria tanto preconceito na escola que pensei em deixar de frequentá-la. Eu não tinha paz, não conseguia abrir a boca, e olha que eu era considerado padrão. Imagina quem não é?

Sei do impacto negativo que sair do armário pode trazer, mas estou consciente do lugar de empoderamento que posso assumir hoje. Tenho aprendido muito sobre o sair do armário e como eu posso, na minha posição de líder, mover essa micro sociedade que lido diretamente e que consequentemente mudará a sociedade em grande escala.

Leonardo D’Assumpção: Eu achei interessante o seu ponto sobre autodeclaração, Filipe. Eu faço uma conexão com a ideia de representatividade, e queria perguntar para o Léo Drummond o porquê de termos uma representatividade LGBTI+ tão baixa nas altas lideranças? Elas realmente não chegaram lá por falta de oportunidades? Ou chegaram, mas estão dentro do armário?

Léo Drummond: Temos os dois casos. O preconceito nos traz barreiras, assim como traz para mulheres no ambiente de trabalho, para as pessoas com deficiência, para a população negra. O Filipe citou uma realidade sobre as pessoas trans: é uma barreira dificílima de ultrapassar, e para outras pessoas da comunidade LGBTI+ também existem outras barreiras. Então, primeiramente existe uma dificuldade de chegar no mercado de trabalho. E depois que você chega, há grandes empecilhos para a progressão de carreira. E mesmo depois que você alcança melhores posições, há uma dificuldade de saída do armário. Por conta do preconceito, as pessoas que tem o que chamamos de “passabilidade” precisam tomar certas decisões durante a carreira: “Eu vou viver de maneira autêntica nesse lugar ou por conta do preconceito é melhor eu me manter no armário para que eu não encontre essas barreiras?” Eu passei por esse momento de decisão durante toda a minha carreira. Em cada emprego que tive na vida, eu precisei tomar uma decisão sobre sair ou não do “armário corporativo” naquela organização, e fui saindo à medida em que eu construía a minha segurança financeira e a minha autoestima. Durante o início da minha carreira eu ficava no “armário corporativo” porque eu tinha certa passabilidade, ou seja, mesmo “dando pinta”, às pessoas diziam que eu era só “educadinho demais” ou algo do tipo, então eu conseguia me manter nesse armário até quando eu quisesse e evitava esses problemas de acesso.

Até que chegou um certo momento em que comecei a desenvolver mais consciência de classe social, em que eu entendi que sou uma pessoa que vem de um background de classe não privilegiada, apesar dos privilégios que tenho como homem branco, e comecei a me perguntar, à medida que fui progredindo na carreira, “como é que eu vou trazer outras pessoas comigo?” Eu acho que quando nós conseguimos adentrar esses lugares que não tínhamos acesso antes, nós temos vontade de trazer outras pessoas, de dar oportunidades. Então me assumir LGBTI+ em qualquer espaço ou posição de liderança que eu conquistasse passou a ser muito importante, porque quando eu me assumo eu estou mostrando para outros colaboradores e colaboradoras que estou sendo respeitado, galgando espaços de destaque, e que eles também podem. Eu via como isso facilitava o processo para outras pessoas, via alguns sorrisos se abrindo quando eu falava naturalmente sobre a minha vida ali dentro da empresa, em um papo cotidiano, simplesmente conversando naturalmente como os heterossexuais fazem.

Mas é óbvio que muita gente opta por não fazer assim. É esse o ponto quando falamos de representatividade: nós sonhamos com os lugares que acreditamos que somos capazes de ocupar, e temos menor probabilidade de sonhar com lugares que parecem impossíveis. Eu encorajo que as lideranças LGBTI+ se assumam (se elas se sentirem seguras para isso), porque é importante para quem ainda não é líder, para que essas pessoas cheguem lá em algum momento. Ver exemplos é muito importante para que elas se encorajem e se preparem para trilhar esse caminho.

Leonardo D’Assumpção: Eu estou do outro lado, eu sou o liderado. Recentemente eu conversei com o CEO da minha empresa sobre a importância dessa representatividade para nós colaboradores. É essencial termos outros Léo Drummond e outros Filipe Abitan porque isso impacta muito quem está aqui do outro lado, dá a sensação de que conseguimos chegar lá. Quando essas lideranças não existem, essa sensação também não existe, achamos que nunca conseguiremos alcançar aquilo, então eu reforço que precisamos muito dessa representatividade.
Participei recentemente de um evento onde se falou muito sobre segurança psicológica e representatividade. Vocês acreditam que existe uma receita de bolo que garanta a segurança psicológica? O que vocês, como líderes, podem fazer para garantir um ambiente seguro para as pessoas LGBTI+ da sua empresa?

Filipe Abitan: Ouvindo o Léo Drummond falar sobre representatividade fez algumas fichas irem caindo. Há 20 anos atrás eu não enxerguei um líder gay, como eu, em uma cadeira onde eu imaginaria sentar. Depois eu fui inspirado, porque quando cheguei na companhia em que eu atuo hoje, o CEO era assumidamente gay, e era líder de um grupo de diálogo sobre orgulho LGBTI+. Percebi que representatividade não tem a ver só como cargo ou status, mas também com as atitudes que você toma sobre o impacto que você quer ter. E nós temos poder de impacto, seja na família, na sua casa ou no time, seja lá qual for o ambiente, a nossa interação gera impacto.

Eu tenho o papel de defender a segurança psicológica perante toda a companhia, não só como Diretor de RH, mas como líder do grupo de diálogo sobre orgulho LGBTI+. Se formos olhar para os últimos 20 anos, avançamos muito em relação à garantia de direitos da comunidade LGBTI+, mas isso é recente. Há 40 anos atrás eu estaria internado em uma clínica psiquiátrica, tomando remédio para a cura gay. Ainda bem que isso foi retirado do CID, e hoje eu posso estar aqui conversando abertamente com vocês. É muito novo, estamos evoluindo e vamos continuar a evoluir, mas ainda é uma jornada de insistência. Eu não acho que exista uma receita de bolo, porque as empresas são diferentes entre si, assim como as sociedades, as micro sociedades, as famílias, então tentar adentrar todos esses mundos de uma forma só é difícil. Enquanto líderes e protagonistas dessa agenda, cabe a nós continuar falando, transformar essas falas em consciência e transformação e dar exemplos.


Léo Drummond: Acho que ações como as que o Filipe citou são parte do processo de criação da segurança psicológica: continuar trazendo informações, treinamentos e ações de forma contínua dentro das organizações. Outro ponto relevante é o papel das pessoas aliadas na garantia da segurança psicológica. Como uma pessoa hétero e cis que se considera aliada reage a um comentário preconceituoso? Ser uma pessoa aliada não é só não discriminar, por que não discriminar só significa que você não cometeu um crime. Ser uma pessoa aliada é, por exemplo, notar a falta de pessoas LGBTI+ na organização ou na equipe, e questionar as lideranças. É não aceitar piadas e comentários preconceituosos na sua equipe. Se você se move para incentivar a inclusão, você é uma pessoa aliada.

Muito da minha coragem dentro da vida corporativa veio de uma líder que eu tive no início da minha carreira, a jornalista Tânia Araújo. Quando ela se colocou como aliada e foi contra uma fala preconceituosa feita dentro da empresa, eu me senti encorajado, entendi que a minha chefe estava do meu lado e que eu poderia ser eu mesmo ali, me trouxe segurança. Ninguém tem como adivinhar quem é uma pessoa aliada, é preciso demonstrar, ter uma fala ou atitude explícita.

Fico muito feliz em ver que estão começando a surgir programas de futuras lideranças LGBTI+. Antes se via algumas empresas com programas para futuras lideranças negras e femininas, e agora começamos a ver esse foco para a comunidade LGBTI+, mas ainda em um estágio muito embrionário. Acho que isso vai ajudar a mudar o cenário da pirâmide de ocupação hierárquica da nossa comunidade, que costuma estar sempre nas bases das organizações. Existe uma pesquisa que mostra que de 5.760 cadeiras de conselho das 500 maiores empresas do mundo, apenas 26 pertencem a pessoas assumidamente LGBTI+, ou seja, 0,5%. Não é coincidência e nem falta de competência, é falta de oportunidade.

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