Na manhã de 20 de junho de 1996, os caminhões de coleta de lixo não circularam na região central de Belo Horizonte. Era impossível. Todas as avenidas, ruas e esquinas nas proximidades da Praça Sete estavam tomadas por uma multidão. Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos vestidos de azul e branco, em peregrinação desde o Aeroporto da Pampulha. Cobertos por papéis picados jogados das janelas e sacadas dos arranha-céus, eles se aglomeravam em torno de um carro do Corpo de Bombeiros. Sobre ele, o escrete do Cruzeiro, vindo de São Paulo, onde conquistara, no dia anterior, o bicampeonato da Copa do Brasil sobre o Palmeiras, com gol de Marcelo Ramos, o “Flecha Azul”.
Era tanta gente na maior festa já proporcionada por uma torcida na capital mineira que não é possível afirmar se ali estava o menino Laudemir ou se ele acompanhava o festejo do seu Cruzeiro Campeão pela TV. Ou, ainda, se por já ter 15 anos de idade e vir de uma família humilde ele estaria, naquele momento, trabalhando para ajudar em casa.
Laudemir amava futebol. Torcer pelo Time do Povo Mineiro e correr atrás de uma bola. E como corria! Com as pernas finas e velozes, fazia lembrar um ponteiro que deu a ele o prazer de gritar “supercampeão”. Tinha o mesmo jeito de Mário Tilico, o “Raio Azul”, herói da final da Supercopa dos Campeões da Libertadores de 1991 contra o River Plate.
Da infância à vida adulta de Laudemir, o Cruzeiro empilhou títulos. Já ele, franzino e incansável, como o multicampeão Ricardinho, o “Mosquitinho Azul”, fez de tudo no seu corre. Bico aqui, trabalho ali. Uma namoradinha acolá. Pouca grana e muita responsabilidade.
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Quando o seu Cruzeiro começou a dar sinais de que poderia tomar um dos maiores tombos da história, veio a notícia: “você vai ser pai”! A menina Nicolly nasceu próxima ao 6 a 1 sobre o Atlético de Lourdes. Um alento para o coração celeste de Laudemir, agora repleto de amor por sua filha.
A garotinha ia crescendo, dando seus primeiros passos, aprendendo a falar e a cantar. Pelas conquistas dos Brasileiros de 2013 e 2014, certamente, a cantiga do “nós somos loucos, somos Cruzeiro” esteve no seu embalar ou no jeito gostoso de brincar com o pai.
Mas a vida, assim como o futebol, prega peças. Laudemir, separado, ficou um pouco mais longe da filha. O Cruzeiro, sendo roubado por dentro, foi se aproximando do precipício. Era 2019. Já gari, ele foi obrigado a recolher o lixo atleticano espalhado pela cidade, na festa do ódio promovida pela Turma do Sapatênis.
Por outro lado, nenhuma tristeza deve ser tão grande ao ponto de apagar a bondade de um coração gigante, como o de Laudemir. Para ele, um novo amor e uma nova família, ao lado da companheira Liliane, da enteada Jéssica e da filha Nicolly.
Quando o Cruzeiro voltou à Série A, em 2022, o Brasil (quase) inteiro agradeceu aos deuses do futebol. Correndo como Mário Tilico, incansável como Ricardinho e certeiro como Marcelo Ramos, o gari Laudemir fez de cada dia de trabalho duro um motivo para agradecer e festejar a graça de poder, com seu suor, ajudar a sua Liliane a cuidar da família.
Três anos depois, após celebrar o Dia dos Pais, Laudemir levantou antes das 5 horas da manhã. Quando terminou de coar o café, Nicole ainda dormia com o pingente do escudo do Cruzeiro – dado pelo pai – pendurado no pescoço. “Volto logo”, se despediu de Liliane. Queria chegar mais cedo, pois, à noite, o Conselho Tutelar iria até a casa fiscalizar a nova moradia da filha, cuja guarda ele ganhara recentemente.
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Mas no dia 11 de agosto de 2025, Lau não voltou para casa. O coração do cruzeirense apaixonado parou de bater por volta das 9h daquela manhã, na esquina das ruas Jequitibá e Modestina de Souza, no Vista Alegre, zona oeste de Belo Horizonte. Assassinado por um criminoso frio, que se autodeclarava “marido, cristão e patriota”.
Daqui por diante, todas as vezes que um caminhão de coleta de lixo passar, desejarei “saudações celestes” em homenagem ao saudoso Laudemir de Souza Fernandes, o Gari Azul.
