Enzo, como bom amigo, fiquei quase duas horas escutando você, no Boteco do Chicão, falar sobre mentalidade de sucesso, planejamento estratégico, transição de carreira e desenvolvimento pessoal. Poderíamos ter falado de tanta coisa realmente importante: futebol e a intromissão criminosa do VAR, possíveis ataques alienígenas (sempre mais plausíveis que metas trimestrais), a escassez de jogadores de porrinha, a legalização do jogo do bicho e, se quiséssemos aprofundar um pouco, sobre como a psicanálise é ótima — desde que mantenha uma distância regulamentar dos psicanalistas.
Você está ficando um sujeito monotemático, Enzo. E apesar da idade avançada, tenho certeza de que essa ressaca persistente e esse gosto amargo na boca não têm nenhuma relação com a Dialética Etílica de procedência duvidosa que ingeri na nossa última conversa. Toda vez que me lembro de você exaltando a capa mais recente da Forbes, meu corpo reage como se tivesse ingerido algo estragado: estômago revirado, cefaleia moral e uma náusea existencial que nem Engov resolve.
Tenho absoluta convicção de que você montou um altar em casa e, todo santo dia, desfila um rosário de mindset para Elon Musk, seguido de uma ladainha com Perini, Primo Rico e seus congêneres tupiniquins. Antes você tivesse entrado para um mosteiro budista e dedicado o resto da vida à busca da iluminação por meio da infusão perfeita de um chá que ninguém bebe, mas todos respeitam.
Olhe para o Bigorna, nosso companheiro de copos e letras. Está no boteco desde a era paleozoica, com a mesma respiração ofegante, sempre com uma piada nova e a leveza de um sábio que já entendeu o essencial: beber não resolve nada, mas ajuda a entender. Tudo bem, com a barriga um pouco maior, mas é a vida deixando marcas, acúmulo de histórias que só os homens raros carregam dentro de si. Está lá, atravessando a existência, resolvendo problemas que ninguém realmente tem. Esse, sim, é um exemplo de liderança com foco em investimento vital de longo prazo.
Mas preciso lhe dizer algo importante, Enzo, algo que nenhum curso on-line ousa admitir: quem move o trabalhador não é o mindset, é a raiva. A raiva de acordar cedo. A raiva de tolerar ordens mal formuladas. A raiva de bater metas que mudam na sexta-feira à tarde. Não é propósito; é ódio funcional.
Não quero assumir um tom professoral, mas biologicamente falando, a raiva sempre foi um excelente plano de carreira. Foi ela que fez nossos ancestrais saírem da caverna, caçar, disputar território e não aceitar passivamente que outro hominídeo comesse sua carne e ainda pedisse feedback. A dopamina pode até premiar o esforço, mas é a adrenalina que tira o corpo da inércia. Sem raiva, ainda estaríamos esperando alinhamento estratégico com o mamute.
Nietzsche — o estraga prazer da palestra motivacional — nos brindou com a ideia de que a vida é movida pela vontade de potência. Esquece esse negócio de performar, ser um time, agir por propósito. Aprenda a buscar força bruta de afirmar-se contra o mundo. A raiva criativa, essa sim, é o combustível. O homem que supera não o faz porque pensou positivo, mas porque estava profundamente irritado com a própria condição.
Enzo, se quiser manter alguma dignidade neste mundo cão, cultive a raiva certa. Não essa raivinha difusa de rede social, mas a raiva lúcida contra a indústria que transforma gente cansada em projetos eternamente inacabados. Desconfie de quem procura lugares vazios para ocupar — especialmente quando o lugar vazio é a cabeça do outro.
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No mais, faça como o Bigorna, presidente interino da Academia Etílica de Filosofia Aplicada: sente-se, beba, observe. Isso te dará uma vida longa e próspera. Amém?
