Em 1995, o Festival Internacional de Arte Negra (FAN) surgiu revolucionando o cenário cultural de Belo Horizonte, uma cidade que, até então, destinava quase integralmente seus recursos públicos às artes produzidas por artistas brancos. Para minha absoluta frustração, naquele ano eu tinha apenas 11 anos de idade e não pude testemunhar de perto esse marco histórico.

Com um patrocínio de milhão de reais, fazendo uma conta de atualização rápida, hoje equivalentes a mais de seis milhões e meio de reais, a cidade foi atravessada por vozes, ritmos, gingas e imagens vindas dos Estados Unidos, Venezuela, Senegal, Cuba, Burkina Faso, França, Uganda, Gana, Trinidad e Tobago, Angola. O mundo negro desembarcou em Belo Horizonte. Cinema, artes visuais, teatro: uma preciosidade impossível de ser listada em um simples artigo.

 

 

A programação musical, então, era um verdadeiro terremoto. Tim Maia, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, João Nogueira, Milton Nascimento, Elza Soares, Racionais MC’s, Ilê Aiyê, Pena Branca e Xavantinho, Leci Brandão, Martinho da Vila, Chico Cezar, Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Djalma Correia … Nomes que não cabem em legenda, que não pedem autorização, que não se curvam à política de migalhas. O FAN não programava artistas: convocava ancestrais.

A cidade foi tomada. Tomada como se toma de volta o que foi roubado. Teatros, praças, cinemas, centros culturais, bairros periféricos e centrais, o FAN escancarou Belo Horizonte para além do cartão-postal. Do Palácio das Artes ao Barreiro. Do Alto Vera Cruz à Praça da Estação. O centro deixou de ser território exclusivo. A periferia deixou de ser ausência. A cidade, por alguns dias, foi um palco para as artes negras.

Trinta anos depois, o que resta? Um festival mutilado. A vigésima segunda edição chega em 2025 com um orçamento vexatório de R$ 2.600.000,00 e uma programação pálida, sem curadoria, sem risco, sem conflito. A ausência de curadoria não é descuido: é método. Assim, a gestão manda sozinha, governa sem escuta, decide sem constrangimento. Autoritarismo cultural travestido de gestão.

O discurso é sempre o mesmo, repetido como ladainha burocrática: “não há recursos”, “o orçamento está contingenciado”, “estamos fazendo o possível”. Enquanto isso, artistas negros aprendem a sobreviver no silêncio. Questionar custa caro. Reclamar fecha portas. O castigo é o ostracismo. E assim se constrói a política do medo, essa pedagogia perversa que ensina a agradecer o pouco e calar diante do absurdo.

Mas o absurdo sempre se trai.

Porque, de repente, aparecem cinco milhões de reais. Não para a arte negra. Não para um festival com trinta anos de história. Mas para um evento cristão de um único dia, o “Vira Brasil”, marcado para 31 de dezembro, na Arena MRV. Cinco milhões para um palco efêmero. Quase o dobro do que se oferece a uma memória coletiva inteira.

O Estado é laico, dizem. Mas o dinheiro público da prefeitura de Belo Horizonte escolhe credo, escolhe púlpito, escolhe quem canta. Fico aqui, sentada à espera da planilha que mostre os milhões destinados ao candomblé, à umbanda, ao budismo, às espiritualidades que não ocupam o poder. Essa planilha não existe. O que existe é hierarquia religiosa financiada com verba pública da cultura.

E a pergunta que não quer calar: quantos artistas negros subirão naquele palco cristão? Quantos corpos negros cantarão para aquele público? Ou os cinco milhões servirão, mais uma vez, para engordar bolsos brancos, enquanto a cultura negra recebe o sermão da austeridade?

Se eu disser que o racismo institucional regula quais eventos merecem receber milhões de reais, certamente o prefeito Álvaro Damião, a presidente da Fundação Municipal de Cultura, Bárbara Bof, e a secretária Eliana Parreiras negarão veementemente. Ainda assim, sigo sem conseguir compreender o que justifica que um festival internacional, com trinta anos de existência, seja tratado com tamanho descaso. Um festival que se diz internacional, mas não conta com atrações de outros países, tampouco com um grande nome de destaque da cultura nacional, isso em uma cidade cuja maior parte da população se autodeclara negra.

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O FAN não morreu por acaso. Ele está sendo lentamente asfixiado. E asfixiar a arte negra é um projeto antigo, persistente, eficiente. Mas é preciso lembrar: o que nasceu como ruptura não aceita ser enterrado em silêncio. Porque o FAN não é um festival. É um grito. E gritos não se administram.

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