Após alguns semestres na universidade, iniciei minha busca por estágios na área de Jornalismo, sem saber que enfrentaria desafios de preconceitos e um mercado de trabalho ainda engessado. Enviei centenas de currículos nas mais diversas plataformas. Nas escassas oportunidades de ser entrevistada, o processo trazia julgamentos e olhares desconfiados.

 

Eu já sabia que ser negra e mulher em um país que historicamente discrimina ambos os grupos no mercado de trabalho significava estar passível de alguns constrangimentos. Um levantamento realizado pelo Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) informa que mais de 40% das mulheres negras relatam ser subutilizadas dentro do ambiente de trabalho, e tal desvalorização pode muitas vezes ser prevista pela postura do profissional entrevistador.

 

Em algumas ocasiões fui questionada sobre informações presentes em meu currículo em tom de desconfiança. “Eu li que você tem experiência com ensino de inglês. Onde você aprendeu? E deu tempo de ficar fluente a ponto de ensinar? Foi professora mesmo ou só auxiliar de classe?”, eram alguns dos questionamentos que me faziam. Precisei, em algumas entrevistas remotas, mostrar certificados de cursos pela webcam, com as mãos tremendo tamanho era meu desconforto.

 

Também não me livrei do racismo recreativo. Ao comparecer a entrevistas com os cabelos soltos, escutei um par de vezes piadas sobre pretender me tornar ‘a nova Maju’, mesmo que eu e a jornalista Maju Coutinho, além do cabelo crespo e pele negra, não tenhamos traços em comum. Com tranças, questionavam se o cabelo “era meu de verdade”. Se aparecia de turbante, era questionada sobre qual a minha religião ou o porquê de utilizar o acessório. Era preta, cabeluda, macumbeira, era tudo, menos jornalista em formação.

 

Decidi então participar de um processo seletivo afirmativo, torcendo para que a instituição compreendesse as particularidades do meu currículo e não fosse displicente ao lidar com a minha negritude. O processo foi feito majoritariamente assíncrono, sem a necessidade de muitas reuniões por câmera, mas mesmo assim eu ficava apreensiva ao imaginar em que momento seria rejeitada ou receberia o convite para a reunião onde teria minha capacidade questionada por conta da aparência física. Meus medos não se concretizaram.

 



Fui devidamente avaliada de acordo com as habilidades informadas no meu currículo e exigidas pela vaga, e só precisei falar sobre meus marcadores sociais no momento em que me pediram uma autodeclaração para entender de quais grupos minorizados eu reconheço que faço parte. Depois disso, não se tocou mais no assunto até a fase final, onde saí vitoriosa: finalmente fui entendida e contratada como estagiária em Jornalismo.

 

Em nome do entretenimento, gostaria muito de trazer um relato impactante, uma verdadeira breaking news que geraria muitos cliques e conversas de elevador. Mas a mais pura verdade sobre a minha rotina de pessoa contratada em um processo seletivo afirmativo não precisa de nenhum rufar de tambores: é assustadoramente cotidiano.

 

Nenhuma das minhas funções depende de ser mulher ou negra, mas sim do que consigo produzir podendo ser influenciada por estas características. Como qualquer estagiária, recebo demandas e sou acionada pela liderança para reuniões, nas quais eu recebo deadlines e direções, mas também sou consultada sobre a minha desenvoltura com a tarefa e se me sinto apta a entregá-la no tempo determinado. Não há culpa ou piadas assediadoras caso eu não tenha experiência específica para realizar uma determinada tarefa, e sim muita confiança e paciência com o meu trabalho e minha capacidade.

 

Do ponto de vista de uma participante, afirmo que ter feito parte de um processo afirmativo não significa que entendo meus marcadores sociais como fraquezas ou prejuízos, ou que desejo algum privilégio por fazer parte de um grupo minorizado. Meu desejo partiu, na verdade, da necessidade de colaborar com uma empresa onde minhas características fossem reconhecidas e validadas, mas sem definir limites para o meu futuro profissional.

 

Ao optar por um processo seletivo afirmativo, as instituições reconhecem as dificuldades de acesso que algumas identidades enfrentam no mercado de trabalho brasileiro, e se comprometem a fazer parte da mudança deste cenário histórico, mesmo que pouco a pouco. Para o sucesso desses processos, porém, as organizações precisam estar dispostas a acolher as especificidades humanas sem torná-las bodes expiatórios ou manequins para exibição em folhetos sobre diversidade.

 

 

 

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