O fim de ano devia ser o período de observar mais as crianças. -  (crédito: Flickr)

O fim de ano devia ser o período de observar mais as crianças.

crédito: Flickr

Esta é a última coluna de 2023 e não tinha como não falar de fim de ano.

 

Por um lado, não existe melhor definição deste período do que a Carlos Drummond de Andrade, em seu poema “O tempo”, quando nos mostra algo singelo, mas fenomenal: o fim do ano é uma ficção. Entre 31/12 e 1º/01, em praticamente todas as circunstâncias que nos tocam, não há a menor diferença.

 

Entretanto, como disse o poeta, uma alma genial foi lá e “inventou” este corte. Estamos exaustos e, de repente, uma virada de calendário é capaz de nos renovar, motivas e dar aquela sensação que vamos “começar” tudo de novo. E essa sensação, tudo por causa do calendário, faz com que nos movamos de forma diferente. É pura bruxaria (e isto é um elogio) e funciona de uma forma extraordinária.

 

Por outro lado, detesto o clima social do fim de ano. As pessoas se amontoam na “obrigação” de participar de uma necessária e impositiva troca de presentes. Para isso, se acotovelam em shoppings, brigam e se desentendem em supermercados e criam o inferno na vida de qualquer prestador de serviços que esteja trabalhando neste período. Tudo em nome do clima natalino...

 

Gasta-se mais do que se pode a pretexto de “aproveitar” o período de festividades. As privilegiadas famílias que não sabem o que é faltar o alimento à mesa, fartam-se até a exaustão em volumosas mesas de comidas que serão, em sua maioria, descartadas, tudo para que a foto fique bela.

 

As festas, muitas vezes encerradas com uma horda de pessoas embriagadas em ponto de conflito, são sorrateiramente registras em seu início, com roupas alinhadas, adquiridas especialmente para o momento, e belos sorrisos. As mensagens de Natal e Ano Novo se multiplicam nas redes sociais e, em questão de horas, você percebe que recebeu a mesma mensagem 70 vezes porque vem gravada com a observação “encaminhada com frequência”.

 

Nada mais distante da razão de existir da data. Nada menos cristão do que o nosso natal e nossas festas de fim de ano. A comida não é repartida, mas desperdiçada; não há reflexão, mas reprodução, em razão da necessidade de cada vez mais volume; não há a simplicidade tão lembrada na simbólica manjedoura, pois é laconicamente esquecida porta adentro dos shoppings.

 

Afinal, se Cristo caminhava com comedidas sandálias, Papai Noel precisa que você gaste um bocado mais. E para quem pouco tem, resta a caridade de alguns poucos que nadam contra esta maré em busca de estender-lhe a mão. Ironicamente, muito mais cristão é o Halloween dos EUA, pois lá pelo menos as crianças compartilham seus doces com a vizinhança.

 

Isso tudo me cansa muito e, por isso, naturalmente prefiro me recolher. Prefiro viver o período dentro da minha cabeça e usar deste tempo para fazer pipocar a bruxaria da renovação e me dar esperança de que talvez no ano que vem as coisas (seja lá o que isso possa significar) fiquem melhores.

 

Curiosamente, todo este movimento também se vê no direito. Passamos o ano todo nos escandalizando com absurdos diuturnos. A cada semana mais um caso isolado, mais um abuso, mais uma violação...

 

Todos os dias somos bombardeados com informações que nos entristecem e mostram o quão frágil é a nossa democracia e nossas instituições; quão violentos são os ataques às nossas instituições; quão débeis são os mecanismos que possuímos para prover o mínimo de respeito à dignidade e aos direitos fundamentais daqueles que mais precisam.

 

Não obstante, ao final do ano, todos fazem festas, apresentam balanços com números positivos e ambiciosas metas para o próximo ano judiciário. E na entrada do recesso, como se em um passe de mágica todos os problemas ficassem em suspenso, desaceleramos e resolvemos parar de ver o que é de ver.

 

Talvez sejamos todos o “tio do pavê”. Sabe aquele tiozão bonachão que faz a mesma piada em toda ceia de natal? Pois é! Ele que é racista; sonega tributo; abusa da esposa; prejudica um colega de trabalho para o benefício próprio; é estúpido com as pessoas que ocupam funções braçais somente por este fato; joga lixo na rua; compartilha pornografia infantil; e etc.

 

Entretanto, ao final do ano, está pronto para divertir a turma com a mesma piada de sempre. E a gente, ciente disso, deixa passar, afinal é clima de fim de ano e é necessário estar feliz, ainda que não. Do contrário, não sai bonita a foto. Ano que vem, começa tudo de novo.

 

E diante deste cenário, você pode se perguntar: como renovar a esperança e as forças? Eu tenho uma fórmula simples: observar as crianças. No natal, a menor criança, aquela que ainda não foi contaminada pelo ambiente, é a que troca o brinquedo pela caixa do brinquedo e se diverte a noite inteira.

 

Ela também se lambuza com a comida e não tem a menor preocupação com o alinhamento da roupa, do cabelo ou da maquiagem. Ela não tem o menor interesse em cumprir horários e ritos e come às 19h porque esperar até as 00h é absolutamente inexplicável. Ela nem sabe o que é uma fotografia e está se importando muito pouco sobre quem veio e quem não veio e, consequentemente, quem a viu ou vai ver.

 

Nada mais cristão do que uma criança com uma caixa na mão. Nada mais valioso do que observar uma criança nos ensinar como fazemos tudo errado. E o que nós fazemos com isso: continuamos teimosos, como toda criança que se preze, ignorando as regras do mundo e tentando fazer o impossível. Que assim seja em 2024.