Unaí, meu pandêmico companheiro, me solicitou a cópia de um trabalho que publicamos em 1996. Eu já não me lembrava do que havia comido no almoço do dia anterior. Quem se lembra?!

Consultando as gavetas do passado, descobrimos que o trabalho publicado se tratava de uma modelagem matemática para identificar surtos de infecções hospitalares em tempo real. Bráulio e eu demos o nome a essa estratégia de “infectômetro". A ideia foi baseada numa frase do Pedro Nava - “A experiência é um farol voltado para trás”.

Pedro Nava era mineiro de Juiz de Fora. Formou-se em medicina na UFMG. Brilhante escritor, poeta e memorialista, um dia recebeu um misterioso telefonema e tirou a própria vida com um tiro na cabeça. O dia que a vida ficou insuportável para ele. Recado enigmático e mortal, o qual até hoje tenta-se decifrar.

O objetivo do “infectômetro” é transformar o passado em luz para o nosso dia seguinte, com limites e incertezas, estatísticas próprias da vida real.

Trata-se de alerta para identificarmos anormalidades e o princípio do que pode ser um problema grave de proporções devastadoras, que nos leve a ter que fazer um Dia D.

Os dias D geralmente significam que não fizemos o “para-casa”. Ou seja, quando a conta chegou e o insuportável bateu à nossa porta.

Dia D de matar mosquito, dia D de vacinar, dia D de correr atrás do prejuízo. Dias deixados para trás cujo farol não iluminou. Sombra epidemiológica do apressado que come cru. Cegueira D ver que isso não funciona.



Procrastinar deveria ser um pecado capital, principalmente no que se refere a ações de saúde pública que afetam milhares de pessoas. Se as verbas públicas para a saúde foram cortadas pelo cara do “...e daí, pessoas morrem mesmo“, os dias D não acabarão nunca. Não adianta rezar sob carros de som na Avenida Paulista e rogar por anistia. Afinal, Deus é onipotente e onipresente, assim como a Polícia Federal. É fácil ser fascista num país livre, o difícil é ser livre num país fascista.

As mudanças climáticas provocadas pela nossa negligência e negacionismo ambiental, certamente estão nos levando a um ponto de irreversibilidade planetária. O dia Q o D já não adianta mais e a hora H estará na esquina.

Dias D são lucrativos para empresas de comunicação, políticos em campanha, mas péssimos para os soldados do front, que têm de desembarcar sob fogo cerrado na realidade do dia a dia do sistema de saúde.

Para enxergar a consequência devastadora do farol apagado para o passado, basta ter que ir a um pronto atendimento com crise hemorroidária aguda e tentar ser atendido junto com milhares de pacientes com Dengue, Chikungunya, COVID e piripaques. Lá se vai a prega mestra, junto com a paciência e a dignidade.

Em janeiro passado, colegas do Hospital das Clínicas de São Paulo publicaram importante artigo na revista "Journal of Critical Care". A pesquisa não é de todo uma novidade para quem trabalha com Controle de Infecções e Controle de Qualidade, mas coloca o farol nos problemas graves que enfrentamos no cotidiano dos hospitais e que vitimiza milhares de pacientes e a própria saúde financeira de todo o sistema.

O estudo revelou que 12% dos pacientes internados na UTI do HC chegaram até lá devido a eventos adversos (EA). EA são complicações resultantes do processo assistencial: procedimentos (35,5%) - complicações relacionadas a cirurgias, endoscopias, passagem de cateteres etc; infecções hospitalares (33,9%); medicamentos (22,6%) - reações alérgicas ou outros efeitos colaterais, como sangramentos e danos orgânicos; infraestrutura (8,1%) – atraso ou indisponibilidade de métodos de diagnóstico ou tratamento e outros processos inadequados em um ambiente hospitalar inseguro.

Essa realidade sabemos ser semelhante na maioria dos hospitais brasileiros. A conclusão apressada e simplista de que se trata de um problema de gestão. Sim, temos graves problemas de gestão. Porém, existem raízes mais profundas dessa catástrofe.
Segundo o Boletim Infográfico em Saúde-BIS (Ano 1-Número 1), o Brasil conta com 6.398 hospitais e 500.253 leitos para internação. A grande maioria da assistência é prestada no país por instituições públicas e filantrópicas. As públicas são subfinanciadas pelo estado. As filantrópicas prestam serviços pelo SUS sem reajustes há cerca de 10 anos, rolando suas dívidas no sistema bancário a juros extorsivos. Algumas são “socorridas” pelas emendas parlamentares numa rédea curta do cabresto eleitoral.

As instituições privadas, por sua vez, com raras exceções, vivem às turras com as operadoras de planos de saúde por melhor remuneração de seus serviços e também alavancam suas dividas com o sistema bancário.

Em suma, no final das contas, a água corre é para o mar. Quem paga essa conta somos todos nós.

O recado enigmático que levou Pedro Nava a uma atitude extrema já chegou aos ouvidos do sistema de saúde há tempos. Chegará o dia D e a hora H em Q o gatilho será uma solução aceitável.

 

 

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