Do Brasil de Bolsonaro ao Brasil de Lula, o Brasil das discussões ociosas, distante das prioridades, ocupou a maioria do tempo, influenciando decisões. Salvou-se o legislativo, ao aprovar a reforma tributária sobre o consumo, a mais importante desde o Plano Real de 1994. Os demais atores relevantes ficaram no débito.

O mercado financeiro, influente desde que a economia perdeu a vez de puxa-fila do dinamismo global dos anos 1950 a meados de 1980 ao persuadir até capitães da indústria a temer o fantasma do “abismo fiscal” permanente, conseguiu desviar o governo Lula de fazer algo minimamente criativo na gestão da economia e do setor público. E o fez sem se avexar em parecer patético e alienado.

Foi o caso do ex-diretor do Banco Central que teve a cumplicidade da chamada “grande imprensa” para profetizar, na véspera do Natal de 2022, que “o ambiente vai ficar pior, é câmbio acima de R$ 6, Selic indo para 16%”. E como estamos agora? Com dólar abaixo de R$ 5 e flertando com taxas no entorno de R$ 4,50, com inflação em 12 meses até novembro de 4,68% e Selic ainda obesa de 11,75%.

Se fôssemos uma empresa em regime de recuperação, seus gestores visitariam credores e potenciais investidores com um plano em que o sumário executivo destacaria nossos diferenciais e o que fazer para alavancá-los, viabilizando o passivo e a saída do prejuízo.

Fizemos o inverso: o governo priorizou o plano de contas para o ano, propondo ao Congresso a chamada PEC da Transição, que abriu espaço para gastos acima do teto então vigente de R$ 168 bilhões.

Na sequência, propôs outro regime fiscal para substituir o teto roído pela gestão passada, buscando conciliar um ligeiro aumento de gasto para os anos seguintes com a meta de zerar o deficit da lei orçamentária (excluindo juros da dívida) já em 2024.

Sobre os planos de indução do investimento para mover a economia – que cresce (pouco) há 20 anos graças às commodities e programas de transferência de renda –, foram complacentes com o sucateamento da base física industrial. Essa, sim, dinamiza os serviços, maior empregador do país. A tal da “neoindustrialização” continua existindo só no papel.


Arcabouço armou o centrão

Tais decisões fornadas entre o resultado das eleições e março são os fundamentos do cenário político e econômico visto em 2023. Por serem todas dependentes de aprovação do Congresso, onde o governo Lula tem no máximo 130 deputados fiéis (dos quais 69 do PT), a oposição da direita hardcore tem outros tantos (com o PL de Bolsonaro com 96) e a maioria é formada por partidos de centro, o governo não tem a iniciativa parlamentar. E terá menos em 2024.

A lei orçamentária (LOA) de 2024 ampliou as emendas ao dispor de cada parlamentar para um total de R$ 53 bilhões, das quais 78% de pagamento obrigatório e prazo até meio do ano para liberar a verba enviada às bases eleitorais. Antes, o governo decidia quando pagar.

As emendas equivalem ao total alocado para investimentos na LOA, grande parte em infraestrutura: insuficientes R$ 54 bilhões.

Para complicar as relações com a maioria centrista na Câmara e no Senado, muito próxima ao empresariado, o governo decidiu elevar os impostos, o grosso deles eliminando regimes especiais de empresas, ignorar a busca de produtividade do gasto público e contrariar a intenção majoritária da reforma administrativa do Estado nacional.

Os resultados estão no noticiário: o governo conseguiu expandir a receita tributária orçada para 2024 ao custo de ceder poder para o chamado centrão, liderado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e atender às demandas paroquiais do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e seu principal apoiador, senador David Alcolumbre. Quem ganhou com isso? Seguramente, não o contribuinte nem o governo.


Um “basta!” no horizonte

Os eventos políticos de 2023 vão influenciar a agenda deste ano de eleições municipais e os próximos. O provável é que a atenção se volte para a regulamentação da reforma que criou o IVA dual (um na União, a CBS, outro para estados e municípios, o IBS, Imposto sobre Bens e Serviços, ambos com mesma base tributável e regras).

Segundo a PEC45, promulgada como emenda constitucional 132, em 90 dias o governo terá de enviar ao Congresso as propostas de reforma da tributação da renda, do patrimônio e dos encargos sobre a folha de salários, e em até 180 dias os projetos para regulamentar o IBS e a CBS. O governo vai tentar acelerar a tramitação da renda, com a qual esperar aumentar a arrecadação. Terá muita dificuldade.

A prioridade para a maioria do empresariado e setores expressivos dos partidos de centro é fazer a regulamentação do IVA. Articula-se, também, uma espécie de “basta!” a aumento da carga tributária, hoje de 34% do PIB, e mais um gordo naco de sonegação, sobretudo entre micro, pequenas e médias empresas.


Caminho se faz caminhando

Há chance de que emerja uma frente de centro que se diferencie do neoliberalismo darwinista do grupo bolsonarista propondo reformas estruturais em sua ação programática, como a redução de carga de impostos depois de 2026, reinvenção da gestão pública por meio da digitalização total de processos e uso intensivo de tecnologia de informação, tudo para elevar o crescimento movido a investimento.

Oportunidades existem, investidores de longo prazo estão vindo em caravanas procurando barganhas. Estes merecem tapete vermelho, não bem os que a ortodoxia busca atender – o hot money que entra e sai num piscar de olhos. Carência mesmo é de projetos executivos bem-feitos e sem risco regulatório em infraestrutura, além de sinais sobre o que queremos da indústria moderna e da tecnologia.

Siderúrgicas, por exemplo, sem proteção, vão minguar e acabaremos exportando só minério bruto. O setor automotivo tende a importar o que tem valor, com as partes apenas montadas no país. Estudo sobre tendências industriais no mundo do think tank ITIF, dos EUA, diz a respeito do Brasil que somos “um país do passado”, com “desempenho consistentemente inferior em relação ao mundo e [que] só continuou a perder terreno desde 2008”.

Continuamos sem estratégia para conter a erosão industrial. A boa nova é que empresários e líderes políticos estão se falando sobre o Brasil necessário.

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Feliz 2024! E que nos inspiremos na mensagem do poeta espanhol Antonio Machado: “O caminho se faz caminhando”. Até a volta!