Jornal Estado de Minas

PALÁCIO DO PLANALTO

Reunião sobre bula da cloroquina não teve registro em áudio ou vídeo

O governo federal não gravou a reunião no Palácio do Planalto em que, segundo participantes, a mudança na bula da cloroquina foi sugerida. Uma eventual alteração tornaria o medicamento oficialmente recomendado para tratar o coronavírus, mesmo sem evidências científicas.



O encontro ocorreu em 6 de abril do ano passado e foi confirmado, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID-19 pelo ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e pelo diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres.

O Estado de Minas pediu, via Lei de Acesso à Informação, cópia de gravação em áudio ou vídeo do debate. Segundo documento enviado nesta sexta-feira (6/8) pela Secretaria Especial de Comunicação Social, ligada ao Ministério das Comunicações, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a quem normalmente cabe registrar reuniões, não recebeu ordem para filmar o debate.

Ainda segundo o Palácio do Planalto, também não houve registro em áudio do encontro, ocorrido no 4° andar da sede do governo federal.



"O setor responsável pela captação de áudio desta Secretaria informou, ainda, que nem sempre é realizado o registro de áudio das reuniões no 4º andar do Palácio do Planalto. Nos casos em que haja gravação da reunião, tais registros não ficam em posse da Secom, sendo entregue, ao final, ao proponente organizador da reunião", lê-se em trecho da resposta ao pedido encaminhado pela reportagem.

O EM fez a requisição em junho, amparado por cópias das notas taquigráficas de depoimentos concedidos aos senadores.

A reunião


Quando falaram aos senadores, Barra Torres e Mandetta confirmaram que a ideia de mexer na bula da cloroquina esteve em pauta. Segundo o ex-ministro, havia sobre uma mesa, uma minuta de decreto presidencial para mexer no texto sobre o remédio.

No Congresso Nacional, Mandetta, em 4 de maio, disse que, tão logo soube da ideia, o presidente da Anvisa rechaçou a possibilidade. "Nesse dia, havia sobre a mesa, por exemplo, um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido, daquela reunião, que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando na bula a indicação de cloroquina para coronavírus. E foi, inclusive, o próprio presidente da Anvisa, Barra Torres, que estava lá, que falou: 'Isso não'".



Uma semana depois, o almirante que comanda a agência reguladora confirmou ter rejeitado veementemente a sugestão. Ele garantiu ter sustentado aos presentes que apenas o fabricante do composto poderia, embasado por estudos, pedir a ampliação do escopo do medicamento.

"A minha reação foi muito imediata de dizer que aquilo não poderia ser, porque... Talvez não seja do conhecimento de vossas excelências, mas só quem pode modificar uma bula de um medicamento registrado é a agência reguladora daquele país, mas desde que solicitado pelo detentor do registro", pontuou.

"Eu disse: 'Olha, isso não tem cabimento, isso não pode'. E a reunião, inclusive, nem durou muito mais depois disso", acrescentou o almirante.

Os participantes


Embora não saiba o autor da suposta minuta para mexer na bula, Barra Torres afirmou que a médica Nise Yamaguchi, defensora do uso do remédio para barrar a pandemia, comentou sobre a possibilidade de mudança. Segundo ele, estavam presentes, além de Mandetta e Nise, o general Walter Braga Netto, à época na Casa Civil, e outro médico.



Mandetta, por seu turno, falou aos senadores sobre a presença de Jorge Oliveira, atualmente no Tribunal de Contas da União (TCU), então chefe da secretaria-geral da Presidência. O ex-ministro também assegurou não saber de quem partiu a sugestão de mexer nas instruções para uso da cloroquina. Ao "Poder 360", o filiado ao DEM declarou, em junho, que "pessoas fardadas" participaram da conferência.

Nise, apesar de confirmar ter ido ao 4° andar do Palácio do Planalto em 6 de abril de 2020, negou a existência de documento para modificar a bula da cloroquina. "Não minutei. Inclusive, esse papel que estava em cima da mesa só falava sobre dispensação de medicamentos", garantiu a oncologista aos integrantes da CPI da COVID-19, em 1° de junho.

Bolsonaro tentou usar cloroquina como 'tábua de salvação'


O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) defendeu, desde o início da pandemia, o uso da cloroquina para dirimir a infecção. Mesmo sem elementos científicos que atestassem a eficácia do composto, o chefe do poder Executivo continuou a incentivar a utilização do medicamento, "carro-chefe" de um coquetel para o comprovadamente inócuo "tratamento precoce".



Mesmo com as três mudanças no comando do Ministério da Saúde, a pasta continua tendo, em seus quadros, a presença da médica Mayra Pinheiro, jocosamente chamada de "capitã cloroquina". A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde é ferrenha defensora do medicamento. A CPI vai à Justiça em prol da demissão da profissional.

 

O que é uma CPI?

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.

Leia também: Entenda como funciona uma CPI


O que a CPI da COVID investiga?

Instalada pelo Senado Federal em 27 de abril de 2021, após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), a CPI da COVID trabalha para apurar possíveis falhas e omissões na atuação do governo federal no combate à pandemia do novo coronavírus. O repasse de recursos a estados e municípios também foi incluído na CPI e está na mira dos parlamentares.