Jornal Estado de Minas

MÚLTIPLO CALVINO

Coletânea com entrevistas de Italo Calvino celebra centenário do autor

 

“Para escrever um livro não basta querer. É preciso que se forme uma espécie de campo magnético: o autor fornece o seu equipamento técnico, a sua disponibilidade em escrever, a sua tensão gráfico-nervosa; o autor é só um canal, e os livros são escritos por intermédio dele”. Quando conversou com o jornal L’Espresso, em novembro de 1972, Italo Calvino já era um escritor consagrado na Itália e outros países da Europa por obras como “O barão nas árvores” e “O visconde partido ao meio”. Mesmo assim admitia dificuldade para iniciar um novo livro. “Não tenho facilidade para escrever”, reconheceu. “Começar uma coisa nova me dá um grande trabalho. Sinto muita inveja dos que se põem à máquina de escrever e só com a vontade conseguem escrever”, afirmou ao Panorama, em 1979.





 

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Estas e outras declarações do escritor estão reunidas em “Nasci na América... Uma vida em 101 conversas (1951-1985)”, um dos destaques entre os lançamentos e reedições da editora Companhia das Letras para celebrar o centenário de nascimento do autor de “Se um viajante numa noite de inverno” e “As cidades invisíveis”. Apresentadas em ordem cronológica, as entrevistas concedidas ao longo de quatro décadas foram, pela primeira vez, reunidas em um único livro e formam o que Mario Barenghi, professor de literatura italiana contemporânea na Universidade de Milão e um dos organizadores da obra de Calvino, chama na introdução de “o mais imponente conjunto disponível de autocomentários calvinianos”.

 

“O efeito é, inevitavelmente, o de um novo e grande canteiro autobiográfico: uma autobiografia in progress, móvel e multifacetada, construída por sucessivas ampliações, na contínua renovação de tempos, rotas, perspectivas: uma autoapresentação similar a um prisma giratório, que adquire forma diante de nossos olhos, jamais permitindo uma visão completa e estabilizada”, define Barenghi. Ele destaca algumas das características que tornaram Calvino um escritor de trajetória singular na literatura do século 20, a começar pela própria origem: filho de pais italianos, Calvino nasceu em 15 de outubro de 1923 na cidade cubana de Santiago de las Vegas, perto de Havana e, logo após o nascimento, foi para a Itália. 

 

“Italo no nome, mas não de fato (ao menos, não de imediato), criado numa cidade de fronteira com vocação cosmopolita como Sanremo, com uma profunda identidade dialetal; meticuloso cultor do impulso imaginativo, mas convicto defensor da importância da autodisciplina e das transformações que demandam esforço; narrador alternadamente realista e fantástico, estranho ao autobiografismo e dedicado à invenção de cidades imaginárias, mas capaz de identificar na paisagem de Sanremo a forma a priori de sua própria intuição do mundo; escritor de identidade mutável, multiforme, fugidio, de vocação quase programaticamente periféricas que, no entanto, com o passar dos anos vem a reconhecer que interpreta uma das vocações duradouras da cultura literária italiana e acaba por se impor, ultrapassando as próprias intenções, como grande clássico da narrativa da segunda metade do século 20 na Itália”, escreve, ainda na introdução de “Nasci na América”, Mario Barenghi.





 

Integrante da resistência ao fascismo italiano durante a Segunda Guerra Mundial e membro do Partido Comunista até 1956, Calvino opina de forma crítica sobre as revoluções políticas e saúda as transformações sociais intensificadas nos anos 1950 e 1960. Também antecipa posicionamentos que se tornariam hegemônicos nas últimas décadas e detalha, com franqueza, os obstáculos enfrentados ao enfrentar a página em branco – o que não deixa de ser uma surpresa considerando a vasta obra do autor, que morreu em 1985, de hemorragia cerebral, aos 62 anos, e tem quase 30 livros lançados no Brasil pela Companhia das Letras.    

 

A multiplicidade de Calvino é destacada pela professora Adriana Iozzi Klein, doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP, em entrevista ao podcast do blog Página Cinco, de Rodrigo Casarin. “Ele tem uma relação complexa com a identidade e com o próprio espaço. E a gente pode entrar na obra de Calvino por qualquer caminho. Tem a fase mais realista, a fantástica... Mesmo com temas recorrentes, como a cidade, que está em toda a obra dele, é um escritor que muda o tempo todo: a cada livro, um novo autor”, afirmou Adriana, na conversa com Casarin. 

 

Autora do estudo “A poética da reescritura em As Cidades Invisíveis de Italo Calvino”, sobre a obra que considera “a mais poética e visionária” do autor, ela lembra que Calvino foi um dos primeiros autores europeus a discutir os problemas decorrentes do desenvolvimento das cidades, do ponto de vista ecológico, ainda nos anos 1950. “Ele usa a ficção para discutir questões. E é um nome emblemático do século 20 porque passa por várias fases e discute as transformações da sociedade num período crucial do século passado, como na Itália, a passagem de uma matriz agrícola para uma sociedade industrial no pós-guerra, a mudança na paisagem urbana, tudo aparece nos livros do Calvino.” 

 

A relação complexa de Calvino com a própria identidade literária é discutida em uma das entrevistas incluídas em “Nasci na América”. Questionado como é possível compatibilizar o autor da fase inicial, marcados pelo neo-realismo, com o das histórias fantásticas (“O barão nas árvores”, “O visconde partido ao meio”, “O cavaleiro inexistente”, reunidas no volume “Os nossos antepassados”) e o que se encanta com as origens do universo em “As cosmicômicas”, ele responde: “Quer me dizer que existem pelo menos quatro Calvinos? Pode ser verdade, se pensarmos apenas na classificação dos livros que escrevi. Acrescento que coisa seria simples se tivessem sido escritos em fases sucessivas. O problema é que esses vários Calvinos se entrelaçam e se sobrepõem no mesmo período de tempo”, explica, antes de resumir: “Parto da multiplicidade dos usos da linguagem que, potencialmente, existe em todos os escritores.” Muitos Calvinos contidos em um só. E que conseguiu, como poucos, unir reflexão e imaginação.