Jornal Estado de Minas

PENSAR

Primeira leitura: os poemas do novo livro de Bruna Beber



Bruna Beber


Angular

O que os meus mortos não sabem e nunca vão ouvir falar 
é que ainda estou de pé e sorrindo em uma cena perdida
no passado de suas vidas; cores-sombras, vivos, sorrindo
dentro da minha vida. De manhã, ao derramar o café
fora da xícara, ainda sou criança e ouço o tlectlectlec
da máquina de escrever da minha tia. Vovó cruzou
a copa pela porta da cozinha, com pressa, sozinha
sobre a fúria de quem vai socorrer a carne assada

A porta do quarto bate, eu salto, um quadro
cai da parede na escrivaninha, a geladeira
esguicha. Ondas. Calor e energia. Não sabem
não querem, não pedem, mas deslizam e eu
rastejo na eletricidade — um sopro, um eco
um traço, um tique — das palavras, da estada
permanente das palavras que disseram um dia

Ainda não terminei o café, tampouco sinto saudade
pois sei que assim que me levantar desta mesa
vou reviver o mundo em altura e graça
sentada na cacunda do meu tio.




  

Leia: Ana Martins Marques comenta o novo livro de Bruna Beber

Chuvisco

Na tarde que me despedi de seus ossos
fiz promessa aos urubus no horizonte
dos meus trinta e três anos

No final disse a eles: andorinhas,
por favor, ora cotovias, massageiem
o passado desses trinta e quatro anos

Só agora aos trinta e cinco é que começo
a dar adeus à sua voz; longínqua caminha
para a mudez, mas há pouco vibrava

ao falar sobre a loja de guarda-chuvas
que visitávamos todo mês só para entoar
nosso bordão — sombrinha pra sobrinha!

Anos e anos depois continuo descendo
a rampa do cemitério, e já naquela tarde
pressinto que nunca chegará ao fim


Mas hoje aos trinta e sete tento balizar
a lágrima e os dias e, olhando o retrato
daquele sábado em Juiz de Fora, sorri.

Milagre dos peixes

Toda montanha é uma onda parada.
Do jardim avisto a flor que cresce
resistiva no beiral do telhado

Toda culpa é circunstância.
Do pombal assisto à gota de chuva
submergir no desnível da estrada

Habitar o trilho é habitar o pássaro.
Tanta pedra moída! Mas é no rasante
da sanfona que o pássaro rastreia

Mando um recado pelo ar
da manhãzinha: maquinista
não sai do lugar, é o destino
de costas que orienta seus dias.





Casarões


O coração é o povoado da memória;
      aparentado com o fígado é o sentimento
                  a indignação ocupa o estômago
        mas o desejo faz do pulmão um pomar

A cabeça é inquilina
          ou proprietária do corpo,
                                        e quem morre primeiro?

Água suja

Ano que vem
fantasia de carne
de sol temperada
com ódio.