
Anelito de Oliveira *
Especial para o EM
Impossível contemplar, na totalidade, o significado do centenário deste escritor português, uma das maiores referências de multiplicidade em literatura do nosso tempo. A despeito disso, a Páginas Editora lançou, com prefácio de minha autoria, “Todos os Saramagos”, coletânea de 30 contos de autores de partes diversas do Brasil e três residentes no país de José Saramago – sendo dois portugueses. No último dia 16, data do aniversário saramaguiano, a celebração se deu com lançamento do livro na Embaixada de Portugal, em Brasília, e celebrações de autores em São Paulo, Rio e novamente na capital mineira, desta vez na Outlet de Livros. O primeiro lançamento aconteceu na Biblioteca Pública de Minas Gerais, em Belo Horizonte, num evento com leituras de textos do homenageado.
Leia: Saramago: 'O mundo é um gigantesco hipermercado'
Leia: Saramago: livro relata relação do escritor com brasileiros e mineiros
Leia: Saramago: 'As injustiças multiplicam-se e a ignorância cresce'
O fim ou não da modernidade, o fim da história, a morte disso ou daquilo, de Deus, da Arte, do Homem, do Autor, nada disso chegou a constituir “a” questão para José Saramago. O escritor procurou se orientar sempre por uma perspectiva crítico-realista em franca oposição a uma perspectiva mítico-idealista. A disposição dos elementos na vida social tem ascendência sobre os discursos que se produzem sobre esses elementos, que consistem evidentemente numa interpretação sobre esses elementos.
Nessa antologia, organizada pela escritora e diretora da Páginas, Leida Reis, e pela escritora Myrian Naves, Saramago passa de autor a personagem. É dada a ele a liberdade de protagonizar um conto aqui, ter seu estilo de escrita celebrado ali, e livros ou personagens seus são tomados de empréstimo a narrativas.

Saramago é, afinal, um operador obstinado dos muitos órgãos que compõem esse corpo, que maneja a pena como um bisturi, com o qual perfura sentidos que costuram outros sentidos, como aponto em meu prefácio. Aproximar-se da obra saramaguiana, como se faz em “Todos os Saramagos” é, então, envolver-se com uma operação altamente objetiva, dotada de uma logicidade que, por si só, denuncia o lugar central que nela ocupa a consciência, que se define em termos fenomenológicos, como se sabe, pela intencionalidade.
A intencionalidade que distingue Saramago consiste, em linhas gerais, na manutenção de uma distância entre sujeito e objeto, entre obra e autor, que foi se tornando cada vez mais difícil ao longo do século 20 à medida que se intensifica a proverbial crise da modernidade, com o desmanchamento no ar de tudo que havia de sólido no mundo pré-moderno, para recordar o Manifesto Comunista de Marx e Engels.
Com o insucesso dos livros de poesia e teatro, Saramago segue no gênero romance, mas não que tenha se rendido ao mercado editorial, mesmo porque nas suas narrativas esses gêneros estão presentes. A vocalidade, a descontinuidade e a reflexividade, por exemplo, que caracterizam a lírica; a objetividade, a presentidade e a transitividade que caracterizam o drama. E está vinculado tanto à filosofia quanto à política. Dir-se-ia que na filosofia está seu ponto de partida, especialmente na filosofia da linguagem, seu arcabouço racionalizante, mas é na política que está seu ponto de chegada, sua potência inquisidora, dessacralizante, de que “Levantado do chão” e o grande marco e “Ensaio sobre a lucidez” é ponto culminante.

A escrita é a viagem, isto é, o deslocamento, escrever é viajar, deslocar-se, o escritor é um viajante, um deslocado, e assim o dado móvel, instável, afigura-se-nos como o paradigma do processo de criação. “Viagem a Portugal”, “A bagagem do viajante”, “A viagem do elefante” – títulos que naturalmente nos vêm à lembrança e conectam Saramago a Garrett tanto quanto aos cronistas-historiadores portugueses do Medievo, como Fernão Lopes e João de Barros, a Camões e outros tantos nomes.
O livro está à venda em plataformas digitais e livrarias físicas, e as organizadoras, Leida Reis e Myrian Naves, pretendem, com ele, que o centenário sirva para perpetuar o nome de Saramago.
* Anelito de Oliveira é escritor, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp. É professor visitante de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na UFMG, autor de “A menina chinesa” (Páginas Editora), entre outros livros
Leida Reis e Myrian Naves (organizadoras)
Páginas Editora
274 páginas
R$ 49

Lupa sobre a obra do escritor
Paulo Nogueira
“A razão de Saramago – e nisso reside a originalidade de sua obra – não é positivista (…) A razão de Saramago é a da ficção e esta exige do leitor outro tipo de fé, que não é menos misteriosa e apaixonada do que a religiosa”, define a paulista Leyla Perrone-Moisés, doutora em Língua e Literatura Francesa e professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A análise está no livro “As artemages de Saramago”, mais uma obra que chega ao mercado brasileiro na passagem do centenário de nascimento do escritor português José Saramago (1922-2010). A autora reúne textos inéditos e outros já publicados em jornais e revistas para fazer uma espécie de guia para a obra de Saramago.
A coletânea aborda obras-primas do escritor, caso de “Ensaio sobre a cegueira”, “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “A caverna” e evidencia o seu talento incontestável. “Ao me lançar nessa dispensável aventura de comentar seus romances, devo declarar que o faço para prolongar o prazer de sua leitura, mais do que para pretender elucidá-los”, diz a autora na introdução”. Com a lupa sobre “O evangelho segundo Jesus Cristo”, ela sai em defesa de Saramago na polêmica com a Igreja católica e com o governo português do primeiro-ministro Cavaco Silva, que censurou o livro.
Ao criar sua própria ficção e representar Jesus Cristo crucificado pedindo aos homens que perdoem Deus, questionar a bondade do ser supremo, negar a imaculada concepção e incutir culpa nos ícones bíblicos, por exemplo, Saramago vira alvo de artilharia pesada. “Que esse evangelho não é nada católico, qualquer pessoas medianamente catequizada logo vê. Nele, Deus é mau, os anjos são demoníacos, a Virgem Maria tem nove filhos, Jesus é amante de Maria Madalena, Judas não traiu...”, lembra Leyla Perrone-Moisés para criticar a banalidade da censura e a discussão “ociosa” sobre a obra.
A crítica literária cita o narrador de “Caim”, outra obra que causou polêmica teológica ao apresentar o primeiro “criminoso” da humanidade como vítima divina e acusar a crueldade de Deus sobre ele: “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”. Em Caim, Saramago ainda é mais cruel com Deus, sempre condenado por ele. “Tanto ‘O evangelho segundo Jesus Cristo’ como ‘Caim’ tratam do desentendimento de Saramago com a transcendência e a fé e são os romances em que ele acertas suas contas com Deus, mostrando-o cada vez mais cruel”, avalia.
JUSTIÇA
No ensaio “Escritor engajado”, Leyla Perrone Moisés faz apropriada análise do Saramago ateu e “comunista de carteirinha”, afiliado ao Partido Comunista Português após a Revolução dos Cravos, em 1974, em que assumiu funções de liderança e lutou por um regime socialista no país, inclusive na defesa da luta armada. Mas engana-se quem pensar que ele era um militante submisso. Já famoso como escritor e pelo Nobel de Literatura conquistado em 1998, admitiu que o modelo comunista falhou, após o colapso da União Soviética (1991). Dez anos depois, retirou seu apoio a Cuba. “A esquerda hoje (1994) não sabe em que pensar, nem como pensar, porque seus modelos desmoronaram e seus ideais foram pervertidos”. E ainda: “Ressuscitar Marx? Não. Vivemos em outro tempo. É preciso algo mais imaginativo do que a simples indignação – que é legítima – para mudar as coisas”, disse ele em 2008.
Entretanto, seu ideal de socialismo jamais esmoreceu, como ele definiu em seus “Cadernos de Lanzarote”: “Não devemos aceitar que a justa acusação e a justa denúncia dos inúmeros erros e crimes cometidos em nome do socialismo nos intimidem: a nossa escolha não tem porque ser feita entre socialismos que foram pervertidos e capitalismos perversos de origem, mas entre a humanidade que o socialismo pode ser e a inumanidade que o capitalismo sempre foi. Aquele ‘capitalismo de rosto humano’, de que tanto se falou nas tais décadas atrás, não passava de uma máscara hipócrita. Por sua vez, o 'capitalismo de Estado', funesta prática dos países ditos do ‘socialismo real’, foi uma caricatura trágica do ideal socialista. Mas esse ideal, apesar de tão espezinhado e escarnecido, não morreu, perdura, continua a resistir: talvez por ser, simplesmente, embora como tal não venha mencionado nos dicionários, um sinônimo de esperança”.