Jornal Estado de Minas

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João Almino 'ressuscita' o Conselheiro Aires em novo romance

“O que quer que seja o futuro do Brasil e do mundo, ‘Memorial de Aires’ sempre terá o que nos ensinar.” É o que garante João Almino, ao explicar o motivo de trazer um dos personagens mais célebres de Machado de Assis, o Conselheiro Aires, para os dias de hoje no romance “Homem de papel” (Record). Nascido em Mossoró (RN) e integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2017, Almino é diplomata de carreira e empresta parte de sua vivência diplomática para descrever os saracoteios de Aires em salões do Itamaraty. 





Em capítulos curtos, numerados e nomeados, Almino usa a sua já consagrada destreza narrativa para tecer uma trama movida pela argúcia e picardia, capaz de comportar até antas (sim, os animais) e reagir de forma irônica à política, “aquele verme que carcomia as entranhas da imaginação, deformava a arte e borrava as belezas do mundo.” A seguir, uma entrevista com João Almino com perguntas formuladas a partir de trechos de “Homem de papel”. 

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Qual foi o ponto de partida de “Homem de papel”? 
Li em “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, que após a morte do Conselheiro Aires foram encontrados sete (ou 10, segundo a versão) cadernos de sua autoria. Como sabemos pela advertência do “Memorial de Aires” (o romance seguinte e último de Machado), assinada pelo editor M. de A., da parte dos cadernos relativa ao “Memorial” foi extraído pouco para publicação. O resto, ele diz, podia aparecer um dia. Imaginar as lacunas do “Memorial” não me pareceu suficientemente interessante para uma obra de ficção contemporânea. Não era o caso de repetir, expandir ou fazer paródia daquele livro. Machado havia concentrado as narrativas dos dois romances em períodos históricos densos. Não valia a pena dizer mais do mesmo, nem buscar panos de fundo históricos menos significativos. Melhor trazer Aires, com sua memória, personalidade, intenções e algum elemento biográfico novo, para outras épocas. Seria possível escrever um livro diferente dos originais que permitisse ao Conselheiro se confrontar com novas realidades.
 
Quais as principais diferenças entre “Homem de papel” e seus romances anteriores? 
Quatro deles flertam com o realismo: “As cinco estações do amor”, “Cidade Livre”, “Enigmas da primavera” e “Entre facas, algodão”. “Homem de papel” dialoga com o início de meu trabalho de ficção. Revisito, de outra maneira, principalmente meu primeiro romance, “Ideias para onde passar o fim do mundo”. O aspecto de fabulação é, nos dois casos, fundamental. E de surrealismo, mas sem escrita automática. Em “Homem de papel”, o chamado lugar de fala é a própria ficção. Pode parecer contraditório que, com esse procedimento e mesmo quando o que seja retratado beire o absurdo, eu busque mais e não menos verossimilhança.




Existe também em “Homem de papel” o que está nos outros sete romances: uma dimensão existencial. Essa dimensão já foi tratada pela ótica de jovens, como em “Enigmas da primavera”; de um fotógrafo que ficou cego, em “O livro das emoções”; de uma professora de filosofia de meia-idade, como em “As cinco estações do amor”; de um jornalista que rememora sua infância, em “Cidade livre”; ou de um advogado em fim de carreira que viaja ao seu Nordeste natal em busca de amor e vingança, em “Entre facas, algodão”. Agora, se apresenta através da ótica de um velho Conselheiro, de seu olhar sobre a vida, ele já aposentado e que teve mais de uma. De seu relacionamento com as mulheres, no passado, e no presente de seu relato verbal dirigido a “vocês”; muito especialmente da sua relação lá no passado com Fidélia e agora com a argentina Leonor, nome que vem da ópera “Fidelio”, a única de Be- ethoven. O tema clássico das relações amorosas se apresenta igualmente na relação da dona do livro em que o conselheiro se encontra, Flor, com seu marido e seu amante.
 
O que o fez decidir por um personagem tão ilustre? Releu a obra de Machado antes de iniciar a escrita do romance? 
Já perdi a conta das releituras de partes da obra de Machado, e meu interesse pelo Conselheiro Aires vem de longe. Alguns ensaios críticos não deixaram de perceber um diálogo que tentei travar com ele em meu quarto romance, “O livro das emoções”. Desta vez é diferente, porque é o próprio Aires quem vem como narrador. 
Ele não é nenhum herói, nem representou papel eminente neste mundo. Nem ele nem qualquer dos personagens de “Homem de papel” deveriam ser tomados como modelos. Não há no livro heróis nem anti-heróis, personagens cem por cento bons, nem cem por cento maus. No entanto, Aires manteve seu caráter de conciliador, negociador e mediador. Que nos relatos antigos tenha sido bem-sucedido e no atual frustrado pelas circunstâncias não é porque tenha perdido suas habilidades. 




 
Foi mais fácil observar o Brasil do século 21 pelos olhos de um homem do século 19?
Para mim, não é questão de facilidade, mas de necessidade. Na ficção, é preciso que a matéria seja vista com distanciamento, mesmo que esteja próxima. Em “Samba-enredo”, a lente do narrador é do futuro, olhando nosso presente, num procedimento inverso ao da ficção científica. Em “Homem de papel”, a lente é do passado. Aires pode traçar paralelos e contrastes entre épocas distintas.
 
O humor permeia os capítulos. É um artigo em falta no Brasil e na literatura brasileira contemporânea?
Falta humor no sentimentalismo piegas ou no realismo urbano que se limite a retratar os crimes e crises do momento. Mas a ficção não prescinde do humor e pode ir muito além de relatos por vezes autobiográficos ou das situações lidas nos jornais. A pena da galhofa talvez divirta um pouco o leitor e o ajude a passar o tempo da barca de Niterói ou o metrô de Taguatinga, mas não para tranquilizá-lo. A ficção deve surpreender, inquietar e fazer pensar o leitor.
 
 
Quais livros de Machado de Assis têm mais a dizer ao Brasil de hoje?
Difícil escolher. Em especial, os cinco últimos romances, cada um ao seu modo, têm muito a dizer ao mundo de hoje, não só no Brasil. Virgília e Brás, personagens centrais de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, com seu mau-caratismo, bem como Capitu, de “Dom Casmurro”, são nossos contemporâneos, mais do que Madame Bovary e seus amantes. “Quincas Borba” nos faz pensar nas crises da razão. “Esaú e Jacó”, que trata da transição da monarquia para a República, é obra fundamental para quem se interessa pelos embates políticos atuais.  O que quer que seja o futuro do Brasil e do mundo, “Memorial de Aires”, o melhor romance de Machado de Assis, sempre terá o que nos ensinar.




 
“Os diplomatas de agora esbarravam por vezes em barreiras à lógica.” Como a sua experiência diplomática o alimentou a escrever “Homem de papel”? O que há de vivência, de lembranças e o que há de imaginação nas descrições do cotidiano, e dos atuais percalços, no Itamaraty?  
Tento muitas vezes partir de algo que conheço para dar asas à imaginação. Fiz isso com a fotografia, com cenários de Brasília ou de outros lugares por onde passei e com vivências e paisagens do Nordeste do Brasil, onde nasci (por exemplo, no romance anterior, “Entre facas, algodão”).
Em “Homem de Papel”, Aires atravessa salões onde pisei e existe uma apropriação de aspectos da vida diplomática que conheço por experiência, por ouvir dizer e por leituras. Como substrato para isso, um elogio à diplomacia e à tolerância, tendo como fio condutor as tentativas malogradas do Conselheiro para tornar o seu entorno menos tenso.
Ele é um estereótipo do diplomata, estereótipo simpático: culto e sempre cordato. Há quem veja nele o próprio Machado, que evitava e detestava a polêmica.
Por outro lado, não faço autoficção, nem roman à clef. Gosto da invenção do personagem e das situações. Fico contente quando me dizem que tal personagem é fulano ou beltrano, é sua colega de escritório, o seu chefe ou a vizinha de porta – pista da capacidade de comunicação do texto. É inevitável que minha ficção esteja impregnada do que sou, como brasileiro vivendo no século 21. Mas a consideraria pobre se viesse a se basear exclusivamente na minha experiência. Por isso, para compor minhas histórias, recorro a tudo o que está ao meu alcance, como um colecionador voraz e desorganizado.




 
“A realidade era um lugar desagradável” é o título de um dos capítulos. A realidade anda dificultando a ficção?
Pode dificultar e ao mesmo tempo tornar necessária a ficção. A solução literária não passa pela idealização dos fatos e situações. Não adianta pintar de cor-de-rosa as nuvens negras. A ficção não deve se desviar do difícil desafio de revelar o lado escuro da vida, o que pode ser feito inclusive com humor e alta dose de imaginação. O pessimismo pode ser usado como método que não implique falta de esperança. Ao revelar o lado sombrio da existência, demonstrando compreensão do que é profundamente humano, o escritor às vezes espera que, se não seus personagens, o leitor possa se valer de alguns instrumentos adicionais para fazer face às muitas adversidades da vida.
 
“A última coisa em que queria pensar era em política, aquele verme que carcomia as entranhas da imaginação, deformava a arte e borrava as belezas do mundo.” Como a política embota a imaginação?
A política é a arte do possível. A ficção deve encarar o impossível. E seu instrumento é a imaginação. É compreensível a opinião de Aires, já ele não queria se envolver com política, nem no século 19 nem no 21. No entanto, a política persegue até mesmo quem é apolítico e detesta política. Foi inevitável que o conselheiro tivesse, em “Esaú e Jacó”, que dialogar com os gêmeos rivais, um monarquista e outro republicano. Em “Homem de papel”, eu o trouxe, com sua posição de não tomar partido, para um mundo de maior complexidade e com cizânias tão ou mais marcadas do que as que presenciou e que não envolvem apenas dois lados da história. Talvez tão dividido quanto o dos anos 20 do século passado.
 
 “Quero sair do livro, isso é tudo.” E você, já sentiu vontade de entrar em algum livro? Em quais deles gostaria de passar uma temporada?
Em algum que ainda não tenha sido escrito e no qual passarei o tempo que levar para concluí-lo.




  
“O mundo era uma colônia penal onde a humanidade pagava um preço por seus pecados.” E quem faz literatura no Brasil, também faz parte dessa colônia? É ‘doudo’?
De uma maneira geral, fazer literatura é uma atividade difícil, à qual não se deve lançar em busca de fama ou dinheiro. Primeiro, difícil como a vida, com suas alegrias e sofrimentos. E não só os sofrimentos de quem escreve – que tem compaixão por seus personagens e sente de alguma forma seus dramas. Nem sempre há o reconhecimento mais justo. Em determinados momentos e lugares, publicar uma peça de ficção pode ser uma atividade de alto risco. Apesar de tudo isso, muitos de nós não podemos escapar à escrita, porque é atividade vital e há uma inquietação que precisa ser posta em palavras, quando falar não basta.

“Homem de papel”
De João Almino.
Record.
416 páginas.
R$ 64,90.