Jornal Estado de Minas

AMÉRICA FEMININA

Autoras latino-americanas conquistam espaço no mercado editorial brasileiro


“Falarei da escrita feminina: do que ela fará. É preciso que a mulher se escreva (...). Não é mais possível que o passado faça o futuro.” A reflexão de Hélène Cixous, expressa no ensaio “O riso da medusa” a partir do incômodo da autora francesa com a ausência de vozes femininas na literatura e na crítica literária, demorou para ecoar na América Latina. Mas, felizmente, não ficou apenas nos anos 1970.



Uma das boas novas do mercado editorial brasileiro nos últimos anos tem sido a atenção à produção ficcional de escritoras latino-americanas de diferentes gerações, aproximando o leitor brasileiro de títulos importantes produzidos nos países vizinhos. E as traduções de romances, contos, ensaios e poemas originalmente escritos em espanhol vão continuar em 2022, graças a um olhar atento ao que há de mais representativo na América Latina.

Algumas editoras, inclusive, criaram coleções exclusivas para esses títulos – caso da Nos.Otras, da mineira Relicário, e da ¡Nosotros!, da paulista Mundaréu. Esta edição especial do "Pensar" traz resenhas de alguns dos livros latino-americanos de maior destaque dos últimos anos, entrevista a tradutora Mariana Sanchez e antecipa como será o selo de ficção contemporânea da editora Autêntica.    

Leia: Escritoras latinas escancaram a herança brutal das ditaduras militares

Leia: Em 'Não é um rio', Selva Almada retrata quatro mortes unidas pela água

Leia: Vida mediada pela tecnologia é o tema de 'Kentukis', de Samanta Schweblin

Leia: Violência cotidiana dá o tom de 'Forças especiais', de Diamela Eltit

Leia: Editora mineira Autêntica investe nos contemporâneos hispânicos

Leia: Mariana Sanchez: 'Cada autora trabalha um tema de forma original'

Com sede em Belo Horizonte, a editora Moinhos se destaca por ter lançado, nos últimos anos, 14 autoras de três países: Argentina, Chile e Equador. “O que aconteceu foi que em várias leituras que fiz nos últimos anos, em grande maioria, os livros de autoras me chamaram muito mais a atenção do que os dos autores”, afirma o editor Nathan Matos. No catá-ogo estão as argentinas Gabriela Cabezón Cámara (de “As aventuras da China Iron”, finalista do International Booker Prize em 2020), Carina Sedevich, Carla Maliandi, Mariana Travaccio, Natalia Litvinova, Romina Paula; a equatoriana Maria Fernanda Ampuero, dos elogiados contos reunidos em “Rinha de galos”; e as chilenas Nona Fernández, Alejandra Costamagna, Julieta Marchant, Maria Jose Ferrada e Alia Trabucco Zeran.

Já a Editora Mundaréu, de São Paulo, mantém uma coleção dedicada à literatura latinoamericana desde 2016. “A nossa intenção era recuperar alguns clássicos que estavam esquecidos, fora de catálogo há muito tempo, ou, por algum motivo, não tinham sido publicados no Brasil, mas nós achávamos que mereciam essa recuperação”, explica Silvia Naschenveng, coordenadora da coleção ¡Nosotros!.




O primeiro a ser “recuperado” foi o guatelmateco Miguel Ángel Asturias (1899-1974), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1967, que teve o romance polifônico “O senhor presidente” lançado pela editora paulista. A Mundaréu também publicou o romance “Andaimes” e “Montevideanos” (contos), ambos de Mario Benedetti (1920-2009), autor de “A trégua” e um dos mais conhecidos escritores do Uruguai.
 

Furacões mexicanos

Além de revisitar clássicos, a Mundaréu olha com especial atenção para a produção contemporânea. “Esse é um momento muito bom para a literatura latino-americana, que está sendo capitaneado por escritoras de vários países. Não é o movimento de um país, é de uma região”, afirma Sílvia Naschenveng. “Temporada de furacões”, da mexicana Fernanda Melchor, vencedor do Prêmio Pen de Excelência Jornalística e Literária em 2018 e finalista do International Booker Prize em 2020, foi traduzido em mais de 15 idiomas e é um dos destaques da coleção ¡Nosotros!.

Na apresentação do livro de Melchor, que se inicia com a descoberta de um cadáver nas margens de um rio de um lugarejo assombrado pela visão de uma bruxa, a editora ressalta que os oito capítulos “soam como um jorro de confissão e desabafo, um fluxo narrativo magistral em que o narrador acaba cedendo terreno aos anseios e ao ritmo mental vertiginoso das personagens miseráveis e sem rumo”. “O livro da Fernanda Melchor parte de uma notícia de jornal de um crime, que ela desdobra maravilhosamente em várias vozes”, conta Silvia Naschenveng. Este ano, a Mundaréu lança outro romance de Melchor: “Páradais”, também sobre a violência e a desigualdade social no México.





Os asfixiantes contos de “Não aceite caramelos de estranhos”, da chilena Andrea Jeftanovic, e o epistolar “Querido Diego, sua Quiela”, da mexicana Elena Poniatowska, que ficcionaliza a correspondência entre os pintores Diego Rivera e Angelina Beloff no início do século 20, estão presentes na coleção da Mundaréu, marcada também pela diversidade temática. “Por muito tempo, houve uma tendência de esperar que mulheres escrevessem, prioritariamente, sobre família, sentimentos, da vida doméstica, assuntos que correspondem à expectativa de um papel feminino. Claramente esse papel está relegado a uma das muitas possibilidades de escrita”, afirma Silvia.


Ensaios, terror e poesia

Já a Nos.Otras, da Relicário, tem 10 obras de não ficção mapeadas de autoras latino-americanas contemporâneas e do século 20. Quatro livros já foram publicados: “Viver entre línguas”, da argentina Sylvia Molloy; “Tornar-se palestina”, da chilena Lina Meruane; “E por olhar tudo, nada via”, da mexicana Margo Glantz; e “O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim”, da chilena, radicada no Brasil, Carola Saavedra. Para este ano, está previsto o lançamento de “A irmã caçula: um retrato de Silvina Ocampo”, da argentina Mariana Enriquez, que teve o romance “Nossa parte de noite”, história de terror ambientada durante a ditadura argentina, com mais de 500 páginas, editado no Brasil em 2021 pela Intrínseca. Fora da coleção, o catálogo da Relicário conta com “Eisejuaz”, da argentina Sara Gallardo (também editada pela Moinhos com o livro “Janeiro”); duas obras da escritora chilena Diamela Eltit (“Jamais o fogo nunca” e “Forças especiais”) e quatro títulos de poesia da argentina Alejandra Pizarnik,

A editora da Relicário, Maíra Nassif, lembra que o interesse dos leitores por obras escritas por mulheres nem sempre foi predominante. “Parece ter caído a ficha de que havia uma desproporção na visibilidade e no reconhecimento entre autores e autoras. Parece haver, portanto, um desejo por parte de leitores e leitoras, e de editoras, de corrigir essa desproporção e tornar o espaço da literatura mais equânime e plural”, avalia. Além disso, ela destaca um interesse maior por literaturas vindas de territórios e línguas não hegemônicas. “Acredito que seja o mesmo espírito que tem nos inspirado a ler mais mulheres. Queremos alargar os nossos horizontes e tomar conhecimento de outras vozes”, complementa.  
 
A editora paulista DBA, por sua vez, resolveu apostar em Vera Giaconi, nascida em 1974 em Montevidéu e radicada em Buenos Aires, e lançar “Entes queridos”, segundo livro de contos da escritora uruguaia. Com um trecho de “A menor mulher do mundo”, de Clarice Lispector, na epígrafe, Giaconi apresenta uma coleção de dez histórias que desnudam as hipocrisias e fissuras familiares. É o primeiro livro da autora publicado no Brasil. 

Outras editoras se uniram para lançar autoras latino-americanas. Caso de “Terra fresca da sua tumba”, da boliviana Giovanna Rivero, coedição da Incompleta e Jandira, com seis contos longos, influenciados por Gabriel García Márquez. A Instante, por sua vez, lançou “Febre tropical”, primeiro romance da colombiana Juliana Delgado Lopera (nascida em 1988, em Bogotá, radicada nos EUA), e a perturbadora “trilogia da paixão” da argentina Ariana Harwicz: “Morra, amor”, “A débil mental” e o mais recente, “Precoce”, romances que questionam valores tradicionais familiares ao estabelecer relacionamentos obsessivos, e fora das convenções sociais, entre mães e filhos. O que apenas comprova que, para as autoras latino-americanas contemporâneas, o momento é de inspiração sem amarras e de produção sem fronteiras. Afinal, como lembrou Cixous em “O riso da medusa” (que acaba de ser editado no Brasil pela Bazar do Tempo), “escrever é a maneira mais íntima de investigar: a mais potente, a mais econômica, a mais democrática.” 


Lançamentos de nomes latino-americanos previstos para 2022

Moinhos
“Homem do outdoor”, de María José Ferrada (Chile)
“Distâncias/habitantes”, de Susana Thenón (Argentina)

Mundaréu
“Cenário de guerra”, de Andrea Jeftanovic (Chile)
“Páradais”, de Fernanda Melchor (México)

Relicário
“Extração da pedra da loucura”, “O inferno musical” e “Prosa completa”, de Alejandra Pizarnik (Argentina)
“A irmã caçula: um retrato de Silvina Ocampo”, de Mariana Enríquez (Argentina)
“O livro de Tamar”, de Tamara Kamenszain (Argentina)
  
Todavia 
“Quando deixamos de entender o mundo”, de Benjamin Labatut (Chile)
“Clara da Luz do mar”, Edwidge Danticat (Haiti)
“A filha única”, de Guadalupe Nettel (México)
 “Dias que não esqueci”, de Santiago Amigorena (Argentina)
 
Companhia das Letras
“As convidadas”, de Silvina Ocampo