Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Bolsonaro dificultou ações contra a COVID, mostra estudo que virou livro

Com a CPI da COVID, o Senado começou a investigar ações e omissões do governo na pandemia da COVID-19, mas o impacto da atuação negacionista do presidente Jair Bolsonaro na crise sanitária é apontado em estudos recentes. Depois de a revista Science concluir que a “combinação perigosa de inação e irregularidades” colocou o Brasil entre as piores nações no enfrentamento ao vírus, outra pesquisa chegou à conclusão que o país, também por decisões políticas, não agiu como deveria para evitar o descontrole da doença.





Essa segunda linha de estudo foi conduzida por pesquisadores da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e da Fundação Getulio Vargas (FGV) e se transformou em um livro. A publicação mostra que as políticas de saúde no Brasil foram descoordenadas, concluindo que, mesmo com um robusto Sistema Único de Saúde (SUS), a resposta brasileira ficou comprometida por decisões do governo, divergentes à orientação das lideranças de saúde.

Com outros dois pesquisadores da Universidade de Michigan, Elize Massard, professora de administração pública da FGV, mestre e doutora em saúde pública pela Fiocruz, coordenou os trabalhos, envolvendo 60 autores que assinam o livro. O compilado faz uma análise qualitativa e mostra como os líderes de 30 países se utilizaram das prerrogativas constitucionais para lidar com a pandemia. Veja os principais trechos da entrevista que ela concedeu ao Correio Braziliense:

No que consiste a nova pesquisa?
Nosso estudo é uma pesquisa qualitativa, na área de ciências sociais, e a questão central é levantar quais as variáveis institucionais e políticas que importaram para dar resposta à pandemia, bem como a forma que os diferentes países as usaram.

Qual foi a resposta brasileira?
O que mostramos é que as políticas de saúde no Brasil foram descoordenadas. Houve uma falta de coordenação dentro do governo federal com os estados e em relação ao que era feito dentro do próprio Ministério da Saúde, dificultando a ação da pasta em termos de políticas sociais e tomada de decisões baseadas em evidências.



A gente observa, no Brasil, uma grande interferência do presidente da República na resposta que ocorre, pela força dos poderes constitucionais a ele atribuídos. O cargo de presidência é forte e dá capacidades para fazer nomeações sem passar pelo aval do Congresso, condições de emitir decretos e medidas provisórias. O que mostramos no livro é como Bolsonaro utilizou esses poderes constitucionais.

A resposta descoordenada pode ser atribuída ao presidente?
Vamos avaliar as decisões. Bolsonaro nomeou quatro ministros no período de um ano e interferiu de uma forma nunca antes vista nas decisões técnicas do Ministério da Saúde, principal pasta que conduz políticas públicas frente a uma crise de saúde. Vimos interferências para estimular e inserir o protocolo clínico de tratamento contra a COVID-19 a partir de medicamentos que não são efetivos e não têm a comprovação científica de benefícios contra a doença.

Bolsonaro interferiu na gestão dos dados, na forma em que seriam apresentados. Também nas medidas de distanciamento social, no uso de máscaras, com veto de parte da lei. Essa foi a forma com que o presidente fez uso dos poderes constitucionais. Muito mais para fazer valer a própria agenda política, controversa e excêntrica, do que para coordenar uma resposta alinhada à Organização Mundial da Saúde.




(foto: CEPESP/Reprodução )

A avaliação converge com o estudo da Science, que correlaciona a politização da pandemia aos resultados do enfrentamento?
A diferença é que nosso estudo é qualitativo e mostra o que foi feito, como as lideranças, nesses 30 países, se utilizaram das prerrogativas constitucionais e quais são as variáveis políticas institucionais atuando nesse contexto. Não há correlação, porque não se trata de um estudo estatístico, como o publicado na Science, que usa outras ferramentas metodológicas para explicar a condução da pandemia no Brasil, ainda que ambos abordem a interferência da agenda política nesse cenário. Assim, o que nós observamos é que Bolsonaro usou as prerrogativas que tem, como a escolha de ministros, para indicar aqueles que fossem mais alinhados à sua orientação.

Dos 30 países analisados, só o Brasil teve uma resposta negativa à pandemia?
Observamos cenários parecidos, por exemplo, nos Estados Unidos, no Chile, que também são países com características presidencialistas e que conferem ao presidente poderes constitucionais para que ele possa agir. Figuras como o ex-presidente Donald Trump e o chileno Sebastián Piñera centralizaram, em si, a resposta e usaram esses poderes políticos para fazer valer as suas agendas políticas.

O viés federalista foi avaliado e serve para o contexto brasileiro. Quais são as observações?
O Brasil, como um sistema federalista, teve atuação importante dos estados para dar respostas. Em meio à ilação do presidente, sobrou aos estados responder de alguma forma. Adotaram medidas de distanciamento social, de fechar comércio… O problema é que foi de forma descoordenada. Como é papel do Ministério da Saúde coordenar a política de saúde no Brasil, na ausência da atuação federal centralizadora, o que a gente acabou observando foi uma série de medidas tomadas em tempos e graus diferentes. E isso não é efetivo para responder a uma pandemia.





Quais são as conclusões?
Primeiramente, que política importa. Instituições políticas importam. Não basta ter um sistema de saúde forte, bem estruturado, com médicos, leitos, se isso não for colocado para uso. Então, o sistema é uma condição necessária, mas precisa ser colocado em uso. E fazer valer o uso é deixar que as capacidades estatais funcionem, integradamente. Vimos que essas capacidades foram colocadas de lado.

À medida que Bolsonaro se recusa a conversar com Mandetta (Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde), coloca-se de lado toda a infraestrutura do sistema de saúde. Então, tudo que o SUS poderia fazer para responder a essa pandemia fica comprometido, em termos de comunicação, coordenação, centralização para organizar a abertura de leitos, melhora na distribuição dos equipamentos, articulação por vacinas.

Como ponderar essa força do presidente?
Temos instituições políticas para isso. O Congresso é uma delas. A CPI da COVID é uma das ações propostas. O Supremo Tribunal Federal (STF) é outro caminho de monitoramento, para apurar se as condutas, de fato, estão funcionando. São formas de avaliar as políticas públicas, especialmente quando o mundo inteiro está questionando a atuação brasileira. Essas instituições servem para olhar com profundidade a área do Executivo, agindo em relação às decisões presidenciais. É necessário fazer esse contraponto, monitoramento.



O que é uma CPI?

As comissões parlamentares de inquérito (CPIs) são instrumentos usados por integrantes do Poder Legislativo (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para investigar fato determinado de grande relevância ligado à vida econômica, social ou legal do país, de um estado ou de um município. Embora tenham poderes de Justiça e uma série de prerrogativas, comitês do tipo não podem estabelecer condenações a pessoas.

Para ser instalado no Senado Federal, uma CPI precisa do aval de, ao menos, 27 senadores; um terço dos 81 parlamentares. Na Câmara dos Deputados, também é preciso aval de ao menos uma terceira parte dos componentes (171 deputados).

Há a possibilidade de criar comissões parlamentares mistas de inquérito (CPMIs), compostas por senadores e deputados. Nesses casos, é preciso obter assinaturas de um terço dos integrantes das duas casas legislativas que compõem o Congresso Nacional.





O que a CPI da COVID investiga?

Instalada pelo Senado Federal em 27 de abril de 2021, após determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), a CPI da COVID trabalha para apurar possíveis falhas e omissões na atuação do governo federal no combate à pandemia do novo coronavírus. O repasse de recursos a estados e municípios também foi incluído na CPI e está na mira dos parlamentares.

O presidente do colegiado é Omar Aziz (PSD-AM). O alagoano Renan Calheiros (MDB) é o relator. O prazo inicial de trabalho são 90 dias, podendo esse período ser prorrogado por mais 90 dias.


Saiba como funciona uma CPI

Após a coleta de assinaturas, o pedido de CPI é apresentado ao presidente da respectiva casa Legislativa. O grupo é oficialmente criado após a leitura em sessão plenária do requerimento que justifica a abertura de inquérito. Os integrantes da comissão são definidos levando em consideração a proporcionalidade partidária — as legendas ou blocos parlamentares com mais representantes arrebatam mais assentos. As lideranças de cada agremiação são responsáveis por indicar os componentes.





Na primeira reunião do colegiado, os componentes elegem presidente e vice. Cabe ao presidente a tarefa de escolher o relator da CPI. O ocupante do posto é responsável por conduzir as investigações e apresentar o cronograma de trabalho. Ele precisa escrever o relatório final do inquérito, contendo as conclusões obtidas ao longo dos trabalhos. 

Em determinados casos, o texto pode ter recomendações para evitar que as ilicitudes apuradas não voltem a ocorrer, como projetos de lei. O documento deve ser encaminhado a órgãos como o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União (AGE), na esfera federal.

Conforme as investigações avançam, o relator começa a aprimorar a linha de investigação a ser seguida. No Congresso, sub-relatores podem ser designados para agilizar o processo.

As CPIs precisam terminar em prazo pré-fixado, embora possam ser prorrogadas por mais um período, se houver aval de parte dos parlamentares

O que a CPI pode fazer?

  • chamar testemunhas para oitivas, com o compromisso de dizer a verdade
  • convocar suspeitos para prestar depoimentos (há direito ao silêncio)
  • executar prisões em caso de flagrante
  • solicitar documentos e informações a órgãos ligados à administração pública
  • convocar autoridades, como ministros de Estado — ou secretários, no caso de CPIs estaduais — para depor
  • ir a qualquer ponto do país — ou do estado, no caso de CPIs criadas por assembleias legislativas — para audiências e diligências
  • quebrar sigilos fiscais, bancários e de dados se houver fundamentação
  • solicitar a colaboração de servidores de outros poderes
  • elaborar relatório final contendo conclusões obtidas pela investigação e recomendações para evitar novas ocorrências como a apurada
  • pedir buscas e apreensões (exceto a domicílios)
  • solicitar o indiciamento de envolvidos nos casos apurados

O que a CPI não pode fazer?

Embora tenham poderes de Justiça, as CPIs não podem:

  • julgar ou punir investigados
  • autorizar grampos telefônicos
  • solicitar prisões preventivas ou outras medidas cautelares
  • declarar a indisponibilidade de bens
  • autorizar buscas e apreensões em domicílios
  • impedir que advogados de depoentes compareçam às oitivas e acessem
  • documentos relativos à CPI
  • determinar a apreensão de passaportes

A história das CPIs no Brasil

A primeira Constituição Federal a prever a possibilidade de CPI foi editada em 1934, mas dava tal prerrogativa apenas à Câmara dos Deputados. Treze anos depois, o Senado também passou a poder instaurar investigações. Em 1967, as CPMIs passaram a ser previstas.





Segundo a Câmara dos Deputados, a primeira CPI instalada pelo Legislativo federal brasileiro começou a funcionar em 1935, para investigar as condições de vida dos trabalhadores do campo e das cidades. No Senado, comitê similar foi criado em 1952, quando a preocupação era a situação da indústria de comércio e cimento.

As CPIs ganharam estofo e passaram a ser recorrentes a partir de 1988, quando nova Constituição foi redigida. O texto máximo da nação passou a atribuir poderes de Justiça a grupos investigativos formados por parlamentares.

CPIs famosas no Brasil

1975: CPI do Mobral (Senado) - investigar a atuação do sistema de alfabetização adotado pelo governo militar

1992: CPMI do Esquema PC Farias - culminou no impeachment de Fernando Collor

1993: CPI dos Anões do Orçamento (Câmara) - apurou desvios do Orçamento da União

2000: CPIs do Futebol - (Senado e Câmara, separadamente) - relações entre CBF, clubes e patrocinadores

2001: CPI do Preço do Leite (Assembleia de MG e outros Legislativos estaduais, separadamente) - apurar os valores cobrados pelo produto e as diretrizes para a formulação dos valores

2005: CPMI dos Correios - investigar denúncias de corrupção na empresa estatal

2005: CPMI do Mensalão - apurar possíveis vantagens recebidas por parlamentares para votar a favor de projetos do governo

2006: CPI dos Bingos (Câmara) - apurar o uso de casas de jogo do bicho para crimes como lavagem de dinheiro

2006: CPI dos Sanguessugas (Câmara) - apurou possível desvio de verbas destinadas à Saúde

2015: CPI da Petrobras (Senado) - apurar possível corrupção na estatal de petróleo

2015: Nova CPI do Futebol (Senado) - Investigar a CBF e o comitê organizador da Copa do Mundo de 2014

2019: CPMI das Fake News - disseminação de notícias falsas na disputa eleitoral de 2018

2019: CPI de Brumadinho (Assembleia de MG) - apurar as responsabilidades pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão





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