Jornal Estado de Minas

DIVERSIDADE NO MERCADO DE TRABALHO

Conheça Eva e Spencer, mulheres trans que venceram no mercado de trabalho



O Brasil figura, pelo quarto ano consecutivo, como o país que mais mata trans e travestis no mundo, e também é o país onde mais de 90% desse grupo precisa recorrer à prostituição para se manter. Spencer Jill Hastings e Eva Pires, ambas mulheres trans, mostram que a luta contra estes dados acontece todos os dias, e a chave para mudar essa realidade é através da educação e oportunidades.



Spencer, de 28 anos, é a primeira mulher trans a trabalhar na Vallourec, multinacional no ramo da produção de tubos de aço. Estagiária no setor de Superintendência de Suprimentos, ela está cursando Comercio Exterior no Brasil e Administração na Califórnia.

“Me sinto honrada, foi uma conquista”, diz Spencer sobre ser a primeira mulher trans na empresa. “Hoje eu me sinto abrindo portas para outras pessoas, que estou sendo a precursora desse movimento”, completa.

Eva, após anos dando aulas de dança, apostou no setor autônomo para não se sujeitar a ambientes preconceituosos e decidiu se tornar representante de beleza da Avon. Em apenas um ano, tornou-se revendedora nível quatro e tem na venda de produtos de beleza sua fonte de renda.

Barreiras e preconceitos 

Spencer é a primeira mulher trans a trabalhar na Vallourec em Belo Horizonte (foto: Gladyston Rodrigues/EM)


Natural de Ouro Branco (MG), Spencer já sofreu com o preconceito antes mesmo de vim para Belo Horizonte, ao passar por uma situação de violência em que achou que iria apanhar no meio da rua e ficou quase duas semanas com medo de sair de casa novamente. Além disso, uma semana antes de ser contratada pela Vallourec, ela conta que um familiar chegou a ir à casa dela pra dizer “você não vai conseguir um emprego sendo desse jeito”. 



Apesar do ambiente de trabalho saudável em que se encontra atualmente, Spencer aponta que a sociedade ainda é muito preconceituosa e que a segurança de pessoas trans nas cidades ainda é muito debilitada, influenciando nas escolhas de percurso e meio de transporte para ir e voltar do trabalho.
“Eu vou pra casa e Uber, não tenho coragem de ir embora a noite de ônibus, porque eu não sei o que vai estar atrás de mim, e isso é muito complicado. Então não é só a questão profissional, tem a segurança, nossa segurança também vale muito, cada vida é importante. Não merecemos morrer por ter uma identidade de gênero ou uma orientação sexual diferente”, afirma.

Empreender para sobreviver

Eva se tornou revendedora Avon em busca de respeito, liberdade e independência financeira (foto: Arquivo pessoal)


Situações de preconceito no mercado de trabalho também aconteceram com Eva Pires, travesti de 33 anos que mora em São Paulo. Aos 26, decidiu passar pela transição e saiu do emprego na época por ser, segundo ela, um ambiente majoritariamente masculino e LGBTfóbico. Decidiu então investir em dar aulas de dança, tanto particulares quanto em estúdios.



Com a pandemia, não conseguia mais dar as aulas de dança e decidiu voltar para o mercado de trabalho formal. Mas via a mudança de tratamento nas entrevistas assim que percebiam que era uma mulher trans. Assim, em 2020 resolveu empreender e se tornar uma revendedora Avon, por uma memória afetiva da tia que também era revendedora e pelo fato de a marca ser muito conhecida e consolidada no mercado.

“Fui divulgando para as pessoas que eu conhecia, alunas da época de dança, amigos, vizinhos, divulgando na internet, como uma forma de me manter durante a pandemia. Seria isso ou a prostituição, como é o caso da maioria de nós, infelizmente”, conta Eva.

Ela lembra que também enfrentou dificuldades e preconceitos como revendedora, mas sendo autônoma tem a liberdade de não se sujeitar a um ambiente violento e estar em lugares onde é de fato respeitada.

“Preconceito existe todos os dias”, afirma Eva. “Se a pessoa não está sendo preconceituosa, eu faço a venda normal, é uma cliente como qualquer outra. Se em algum caso, como já aconteceu, a pessoa bater a porta na minha cara, eu não volto mais lá. Eu penso primeiro na meu bem-estar, na minha saúde física e mental”, completa.




Oportunidade como caminho contra o preconceito

Eva fala do estranhamento das pessoas ao ver travestis e mulheres trans em diversos ambientes além da rua, como em um churrasco de domingo com familiares e amigos, ou em cargos de chefia nas empresas.

Tanto Eva quanto Spencer defendem que o maior desafio é a sociedade entender que mulheres trans e travestis são capazes, independentemente da identidade ou orientação sexual, e que isso não define profissionalismo ou a qualidade do trabalho que realizam.

“Acho que o mais importante é a oportunidade, seja no mercado formal, seja como empreendedora, seja em cargos de CEO, gerencia etc, e não sermos vistas apenas pela nossa identidade, seja qual for, mas que sejamos vistas pelas nossas capacidades”, afirma Eva.  

* Estagiária sob supervisão do editor Benny Cohen

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