Jornal Estado de Minas

MADE IN MINAS

Como o terroir influencia a charcutaria mineira

O processo de regionalização dos produtos da Charcuteria Sagrada Família começou pelo salame com castanha de baru (foto: Samuel Reis/Divulgação )
Muito se fala sobre terroir na gastronomia. Já se sabe que a combinação de solo, microclima e técnicas caracteriza a produção de queijos e vinhos, mas também vem definindo as particularidades de salames, presuntos e linguiças. Afinal, como se expressa a charcutaria artesanal mineira? Vamos responder a essa pergunta mostrando o trabalho, que envolve o uso de ingredientes locais, de produtores em quatro cidades diferentes: Montes Claros, Brumadinho, Coronel Xavier Chaves e Jaboticatubas.



Em conversa com uma amiga chef de cozinha que mora na França, Ugo Borges ouviu: “Se fosse para abrir um negócio no Brasil, seria uma fábrica de embutidos. Aí só tem produto industrializado”.

Era tudo o que ele precisava para deixar a carreira acadêmica como professor e realizar o sonho de entrar para a gastronomia. Há seis anos, chegou ao mercado a Charcuteria Sagrada Família, em Montes Claros, que levanta a bandeira da valorização de ingredientes do Norte de Minas.

O trabalho começou muito antes disso. Em 2014, Ugo e a esposa, Tatiana Veloso, viajaram para a França com o objetivo de entender a história da charcutaria e visitar pequenos produtores. Voltando para o Brasil, eles montaram a fábrica e começaram os testes.



Por três anos, ficaram de portas fechadas, dedicados à padronização das receitas (a longa espera se deveu ao fato de que alguns produtos, como o presunto cru, chegam a passar por um processo de 24 meses de maturação).

O casal só lançou a marca quando sentiu que as técnicas de charcutaria estavam dominadas. Mas, até então, só reproduziam receitas, principalmente da escola francesa (tanto que fizeram questão de colocar no nome a palavra “charcuteria”, que vem do termo francês “charcuterie”).

As primeiras receitas próprias apareceram em 2018. “Definimos o caminho da valorização da cultura regional. Fizemos a fusão de técnicas para criar produtos novos e inserimos elementos da região para dar esse sabor do terroir norte-mineiro”, explica o mestre charcuteiro.



Os testes se iniciaram pelos curados, com a criação do salame com castanha de baru, ingrediente muito abundante em Montes Claros, que está no “coração” do cerrado. Por dentro da tripa natural de porco, eles colocam copa-lombo, alho triturado e a castanha de baru quebrada na faca, que ainda fica pedaçuda e entrega crocância.

No restaurante Uaithai, em Tiradentes, o copa-lombo defumado da Catauá Artesanal é acompanhado de purê de banana-da-terra, ragu de linguiça e molho de cachaça (foto: Uaithai Tiradentes/Divulgação)
Na sequência, entrou em produção a bresaola de carne de sol, único produto com carne bovina da Sagrada Família. “Mudamos o corte que se usa na Itália para o lagarto e tiramos especiarias como zimbro para introduzir a pimenta-de-macaco, que é do cerrado. Além disso, nos inspiramos nas técnicas que existem em Montes Claros para fazer carne de sol”, ele detalha. A pimenta regional não tem picância, interfere na experiência apenas com o seu aroma.

Segundo Ugo, os ingredientes regionais são comprados de comunidades originárias do Norte de Minas, o que fortalece o comércio local. Enquanto a pimenta-de-macaco (também presente no copa-lombo) é fornecida pelos chamados veredeiros, que vivem nas regiões das veredas e são considerados guardiões das águas, a castanha de baru vem de uma comunidade quilombola na cidade de São Francisco.



Cachaça e rapadura

Na linha dos defumados, a regionalização se dá pelo uso de cachaça e rapadura de Salinas. “Os norte-americanos são especialistas em defumação e sempre usam destilado e açúcar no processo da cura da carne, então fiz essa substituição. A família da minha mãe é de Salinas e tenho uma relação afetiva com esses sabores, estão na minha memória.”

Entre as características marcantes dos produtos da Charcutaria da Serra, como o copa-lombo defumado, destacam-se o uso de pimentas e o adocicado da defumação em madeira de carvalho (foto: Charcutaria da Serra/Divulgação)
Depois da cura com cachaça e rapadura, bacon, porchetta (rolo de lombo com capa de costela e barriga), pancetta (só barriga), linguiças e lombo passam por defumação em lenha de goiabeira (escolhida por ter em abundância na região e ser mais suave).

A linguiça tradicional mineira ganha um toque regional inesperado. “Um dia, uma senhora perguntou se a gente fazia igual ao pai dela. Ela explicou que ele picava o porco na faca e raspava a carne com rapadura.”

Desde então, eles incluíram na receita raspas de rapadura (não é para ficar doce, apenas equilibra o sabor). A linguiça continua sendo 100% de pernil e ainda leva pimenta-do-reino. Utiliza-se uma tripa importada da Alemanha, que é mais resistente, não quebra nem fura.



Ugo não deixou de fazer receitas clássicas de outros países, mas volta seu trabalho cada vez mais para os produtos regionais, que são os mais desejados.

Isso ficou ainda mais evidente desde que eles abriram loja em BH, há três meses. O salame com castanha de baru, por exemplo, vende muito mais do que o tradicional, feito com pernil, vinho tinto seco e pimenta-do-reino, por isso até estão aumentando a produção dele, para que não falte no estoque.

“Esse movimento da charcutaria artesanal vem crescendo muito e vejo que as pessoas querem dar um passo para trás. Não querem mais o industrializado, preferem o autoral, estão buscando sabores regionais. Isso significa que não precisamos ficar presos às receitas de fora e podemos investir em uma charcutaria autoral e criativa”, destaca o mestre charcuteiro, que está testando o salame com castanha de pequi para ampliar a linha de produtos regionais.

A Charcuteria Sagrada Família utiliza a técnica de carne de sol do Norte de Minas para fazer uma versão da italiana bresaola (foto: Samuel Reis/Divulgação )
Com esse trabalho no Norte de Minas, ele espera trilhar o caminho da denominação de origem, como já aconteceu com os queijos.



A Sagrada Família é a única charcutaria de Minas Gerais com certificação do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). Recentemente, a fábrica recebeu o selo do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi), que autoriza a comercialização dos produtos em todo o Brasil.

Mais que linguiça

A charcutaria tem papel fundamental na formação da cozinha mineira, afirma Petterson Tonini. “Costumo dizer que, se tirarmos a charcutaria, vamos perder a identidade de alguns pratos, como o feijão-tropeiro, que leva linguiça, bacon e carne serenada ou de sol”, aponta o fundador da Tonini Charcutaria Artesanal, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

'Fazer algo autoral não é fácil, demora até você achar o ponto de cada receita. Errei muito, mas gosto de desafios.' Petterson Tonini (Tonini Charcutaria Artesanal) (foto: Tonini Charcutaria Artesanal/Divulgação)
É fato que as técnicas de conservação de carnes fazem parte da nossa vida desde a chegada dos portugueses, com a produção caseira nos quintais com fogão a lenha. Porém, só ganharam o nome de charcutaria e mais interesse quando se entendeu que dava para ir muito além das linguiças.



Petterson mesmo fez sua estreia como charcuteiro com uma peça de copa-lombo. Isso em 2014. “Sou formado em nutrição e aprendi a fazer linguiça para entender os processos, mas só me aventurei na charcutaria quando estava buscando um hobby e resolvi testar para consumo próprio.”

Na época, como não havia literatura em português, as pesquisas tiveram que ser em francês, espanhol e inglês (a professora mineira Cláudia Colamarco só lançaria seu livro “Charcutaria passo a passo” em 2019). Em 2018, ele visitou três cidades na rota do jamón para ver na prática o que tinha estudado.

Quando abriu a charcutaria, que funciona dentro de um contêiner, Petterson já buscava fazer um trabalho com identidade. Não só porque não dava certo seguir as receitas dos livros (o sal ficava sempre para muito mais ou muito menos), mas por também saber como seria importante diferenciar seus produtos.



Com esse pensamento, foi desenvolvendo as próprias receitas, unindo técnicas internacionais com um mix de temperos único.

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“Acho que o que move o charcuteiro artesanal é fazer com que as pessoas comam o seu produto e saiba que é seu. Você acaba imprimindo sua característica e criando uma assinatura. Fazer algo autoral não é fácil, demora até você achar ponto de cada receita. Errei muito, mas gosto de desafios.”

No seu caso, o resultado são produtos com mais refrescância, já que ele gosta de usar muito anis, semente de coentro, funcho e erva-doce.

Na Espanha, Petterson conheceu o processo de produção do presunto pata negra, a partir de porcos ibéricos criados soltos que, em determinado período do ano, comem exclusivamente bolotas e levam um aroma mais acastanhado para a carne.

De volta ao Brasil, ele não tirou essa história na cabeça, pensando se não daria para fazer o mesmo em Minas. Até que conheceu Euler Ribeiro, produtor de orgânicos em Entre Rios de Minas. “Ele conta que, quando criança, via animais comendo o coco da macaúba. Como é veterinário e conhece o caso da Espanha, pensou: será que não consigo criar porcos assim?”

Só sal e pimenta

Por ano, são criados em torno de 10 porcos, soltos, comendo o fruto da palmeira macaúba. O charcuteiro optou por temperar os pernis inteiros de 20 quilos apenas com sal e pimenta-do-reino para que a carne possa revelar toda a sua expressão. As peças ficam um ano e meio maturando no contêiner.



O kit feijoada da Catauá Artesanal tem paio, calabresa, bacon, costelinha e lombo (foto: Catauá Artesanal/Divulgação)
“Esse é um produto que não deixa nada a dever para o pata negra em termos sensoriais. Tem as mesmas características: gosto acastanhado, gordura mais proeminente e muito marmoreio”, descreve.

O porco alimentado com macaúba também é usado no preparo do lardo. O charcuteiro retira a gordura que fica em cima do lombo (com quatro dedos de altura) e tempera com alho, alecrim e sal.

A Tonini inovou com a bresaola suína (a receita original italiana é com carne bovina). Trocou lagarto pelo lombo, corte mais macio e mais tenro, e acrescentou especiarias como cravo e canela, em busca de um resultado bem aromático.

Outra exclusividade é a língua de boi maturada (nos livros, só se fala em língua defumada). “É um produto que você não acha em outro lugar. Quis brincar com o processo da bresaola bovina, só que com outro corte, que ainda envolve muito preconceito”, explica.



A linguiça com mexerica também surpreende. Em Brumadinho, onde fica a charcutaria, a produção da fruta é muito grande e acaba sendo pouco valorizada.

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“Desenvolvi essa receita para aproveitar um produto local e homenagear a cidade. Ralo a casca (sem atingir a parte branca, para não amargar) e acrescento o suco diluído, então dá para sentir muito sabor. Na hora em que você morde, tem a sensação de que a mexerica está muito presente.” Como é de se imaginar, essa linguiça está entre as mais desejadas.

Sem geladeira

Charcutaria é o termo que se refere ao conjunto de técnicas artesanais de conservação de carnes, tais como salga, cura, defumação, maturação e fermentação. Tem origem em países ao Norte, onde os animais eram abatidos e preparavam-se os cortes para consumo durante os períodos rigorosos de frio. Os portugueses trouxeram para o Brasil esse conhecimento e a aplicação, principalmente, em carnes suínas. As técnicas se espalharam por aqui numa época em que não havia geladeira para conservar as carnes.

De queijo a embutidos

A família que fundou a Catauá, em Coronel Xavier Chaves, no Campo das Vertentes, sempre produziu queijos. Pai e filha chegaram a fazer testes com presunto, mas a charcutaria só se materializou com a chegada de Emmanuel Maier Rotilli.



'Fizemos a fusão de técnicas para criar produtos novos e inserimos elementos da região para dar esse sabor do terroir norte-mineiro.' Ugo Borges (Charcuteria Sagrada Família) (foto: Samuel Reis/Divulgação)
“Quando começamos essa conversa, me lembrei da minha infância e do meu avô que fazia salame no Rio Grande do Sul. Decidimos resgatar essa história, produzindo alimentos que não dependam de refrigeração”, destaca o mestre charcuteiro, que nasceu em São Paulo, foi criado no Mato Grosso do Sul e escolheu viver em Minas.

Isso explica porque eles começaram pelo salame. Emmanuel foi atrás da receita da família, de origem italiana, mas, como ninguém tinha o passo a passo documentado, ele ficou um bom tempo estudando para chegar a uma combinação de copa-lombo, paleta suína e toucinho.

“Busquei o sabor que estava na minha memória por meio de temperos como alho, vinho e noz-moscada, que são a base do salame tipo italiano”, ele conta. Os parentes amaram o resultado, com acidez e picância na medida certa.



O charcuteiro também desenvolveu uma receita própria de pepperoni. Em vez de misturar carnes bovinas e suínas, como se faz tradicionalmente na Itália, ele usa apenas copa-lombo. Sentiu que isso agradava mais o paladar do mineiro.

Assim como os outros defumados, o pepperoni tem contato com lenhas de mexerica do entorno da fazenda, o que lhe confere um sabor regional. Seguindo esse mesmo raciocínio, surgiu a ideia de usar a casca desidratada de limão colhido no quintal para fazer um lemon pepper caseiro, com sal e pimenta preta, que tempera o bacon.

Emmanuel tem pesquisado para usar outros ingredientes da região, como pimenta-de-macaco, e reforçar as particularidades que caracterizam sua charcutaria. “Produzimos do lado de uma área de preservação, a umidade é sempre muito boa, então o nosso copa-lombo fica um espetáculo. Como a carne é entremeada de gordura, você sente a fatia macia e suculenta”, aponta.



Por se tratar de produtos artesanais, ele usa menos conservantes e respeita o tempo de maturação.

Alquimia de temperos

Gesner Belisário tem uma história bem antiga na charcutaria. Desde menino, gostava de participar do ritual em família de matar o porco e preparar as carnes. Em 1987, ele fez um curso de defumados e tomou ainda mais gosto pela área. Produziu linguiça e lombo até cansar e mudar de profissão. Pouco antes da pandemia, voltou a fazer o que realmente gostava.

O salaminho da Serra já ficou entre os 10 melhores do Brasil em duas edições do prêmio da CNA (foto: Charcutaria da Serra/Divulgação)
“O que mais sonhava era aprender a fazer salame, é a minha paixão. Sempre gostei do sabor picante”, justifica o fundador da Charcutaria da Serra, que fica na Serra do Cipó, em Jaboticatubas, na Grande BH.

Depois de buscar várias referências, Gesner foi fazendo adaptações e criando a sua própria “alquimia” de temperos para chegar ao chamado salaminho da Serra. Sua receita combina 100% de copa-lombo com alho, pimentas calabresa e do reino, sal e açúcar.



“Levo de 30 a 40 dias para fazer esse salame. Tem que cuidar igual criança, todo dia olhar para ele”, conta o charcuteiro, ao falar do seu produto mais vendido.

O charcuteiro da Serra do Cipó criou mais duas versões do salame, um com recheio de calabresa (massa inspirada na região italiana de Calábria, com muita pimenta calabresa) e outro com azeitonas verdes.

“Sempre gostei da cor e do salgadinho da azeitona e resolvi testar a defumação, que nada mais é do que um processo lento de cozimento com fumaça. Nessa secada, a carne incorpora o sabor da azeitona e fica muito bom”, detalha. As azeitonas são fatiadas, então você consegue sentir os pedaços.

Entre as características marcantes dos produtos da Charcutaria da Serra, destacam-se o uso de pimentas (para sentir sabor e não ardor) e o adocicado da defumação em madeira de carvalho. Além dos salames, Gesner destaca o joelho dianteiro de porco desossado e defumado, o bacon temperado com páprica picante e a pancetta defumada.



Coincidentemente, o mesmo professor do curso de defumados deu a ele acompanhamento técnico por dois anos em um projeto-piloto de charcutaria do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).

Depois disso, o salame da Serra participou de duas edições do prêmio da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA): em 2020, ficou em quarto lugar e este ano conquistou a quinta posição. Gesner recebe interessados em aprender sobre a charcutaria artesanal para vivências de fim de semana.

Feijoada com paio, calabresa, bacon, costelinha e lombo (Catauá Artesanal)

Ingredientes
1 pacote de feijão-preto; 1 cebola grande; 6 dentes de alho; 3 folhas de louro; 1kg de paio, calabresa, bacon, costelinha e lombo; sal e pimenta a gosto

Modo de fazer
Deixe o feijão de molho de um dia para o outro. Dispense a água. Coloque o feijão na panela de pressão com água passando três dedos a sua quantidade e cozinhe até que fique ao dente. Em outra panela, refogue o bacon, a calabresa e o paio até que fiquem dourados. Adicione a cebola e o alho picadinhos, mexendo sempre. Por último, acrescente o lombo e a costelinha, que são muito macios e não podem desmanchar. Adicione o feijão cozido e deixe cozinhar junto com os demais ingredientes. Se achar necessário, acrescente mais água e deixe cozinhando em fogo baixo até o caldo encorpar e apurar o sabor. Adicione sal e pimenta a gosto e sirva ainda quente com arroz, farofa, couve e laranja.

Serviço

Charcuteria Sagrada Família (@charcuteria_sagrada_familia)
Em BH: Avenida do Contorno 7270 – loja 5, Lourdes
(31) 3284-9560
Em Montes Claros: Rua Olímpio Dias de Abreu – 107A, São Luiz
(38) 99969-6554

Tonini Charcutaria Artesanal (@toninichar)
(31) 99868-1473

Catauá Artesanal (@queijocataua)
(32) 3373-2200

Charcutaria da Serra (@charcutaria.daserra)
(31) 99855-1663