“Tire 5 cartas” é mais uma tentativa de ressuscitar a comédia brasileira, gênero de enorme sucesso desde o início do século e cuja morte coincide em linhas gerais, e não por acaso, com a morte de Paulo Gustavo.





Em um momento hostil ao cinema em geral e ao brasileiro em particular, o filme parece se perguntar o que, afinal, o espectador brasileiro gostaria de ver. Na dúvida, atira para todo lado: a comédia, o musical, o filme fantástico, comédia dramática.
 



Ali, Fátima, papel de Lilia Cabral, é a mulher que há muito trocou São Luís do Maranhão pelo Rio de Janeiro, na esperança de se tornar cantora famosa. Não consegue: virou cartomante que se vira com pequenas vigarices, ajudada por Lindoval, vivido por Stepan Nercessian, seu marido, que se apresenta em shows mambembes como cover de Sidney Magal.

Nisso, ela é envolvida na trama de um precioso anel, roubado por dois malandros e lhe entregue por engano pelo malandro menos esperto. Obrigada a voltar para São Luís, Fátima encontrará a irmã, que havia renegado décadas atrás.





O reencontro com a família, sobretudo a irmã, com quem teve e ainda tem enormes rixas, se dá em uma pensão onde se reúnem personagens que, em linhas gerais, poderiam ser personagens de algum seriado cômico do canal Multishow.
 
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Modelo 'globochanchada' perde fôlego

A comédia brasileira das primeiras décadas deste século se apoiava na estética vinda da Rede Globo, daí o apelido de “globochanchadas”. A proximidade com o estilo Globo, de narração, mas também estético, era uma espécie de garantia prévia.

Essa segurança não existe mais. A própria Globo hoje tateia o terreno todo o tempo em busca de tramas, atores e estética capazes de atrair o público. Já não existe um padrão a seguir ou do qual se aproximar.




Daí se explica essa espécie de salada de gêneros, em que o diretor Diego Freitas parece preferir trabalhar na linha menos histriônica, embora se submeta ao gosto consagrado do espectador brasileiro pelo histrionismo.

E, com efeito, é quando um fantasma vem assombrar a simpática leitora de cartas – por momentos, uma espécie de “Ghost” reciclado e com um quê de “Dona Flor e seus dois maridos” – que talvez o filme chegue a seus melhores momentos.

Mas, como é preciso se garantir por todos os lados, o filme lança mão até de participações especiais sem muito sentido de Alcione e Sidney Magal. Magal, aliás, aparece por alguns segundos apenas.





Em suma, “Tire 5 cartas” participa dessa categoria de filmes, chamados hoje de “grande bilheteria”, que, se conseguirem chegar efetivamente a obter boa frequência nas salas, significa que captaram o “ar do tempo”.

Pode ser, no caso, a vigarice (estelionatos não faltam no país, no momento), a música romântica, o samba, a intervenção do fantástico (certa espiritualidade) ou do destino (o enriquecimento mágico que as cartas de Fátima tanto prometem à sua insegura freguesia) ou, finalmente, o encontro com uma família originalmente esfacelada. Como dirá a própria Fátima, “família para mim é família aberta”.

O que significa, por um lado, o surgimento de uma comunidade unida pelo afeto e pelas afinidades, e por outro acena para um certo progressismo que passa pelo acolhimento a gays e transgêneros, pelo reencontro com irmãos com quem duelamos desde o berço, por viúvas que podem se casar e ser felizes e etc.




 
Este pode ser um viés um tanto arriscado. Mas é tão arriscado quanto descobrir o futuro nas cartas ou nos signos: para o cinema que aspira ao grande público não há alternativa que não seja arriscar.

Cota, greve e streaming

Se der certo, pode inaugurar um novo ciclo de sucessos e se tornar um fenômeno realmente significativo. Caso contrário, não será nada, o que é infelizmente bem mais provável, seja porque os espectadores estão preguiçosos desde a pandemia (e do streaming), seja porque o Ministério da Cultura não move um dedo para restabelecer a cota de tela capaz de minimamente permitir aos filmes brasileiros que concorram com os filmes de Hollywood.

Se o parafuso der ainda outra volta, pode-se pensar que filmes como este podem começar a ocupar o lugar de produções de Hollywood, agora empacadas com a greve de atores. Se der ainda outra, não é impossível que o público, acostumado aos filmes – em geral ruins – do confortável streaming, contente-se com isso e desencane de vez da ideia de ir assistir a filmes em salas.

Para resumir: cinema está longe de ser um negócio simples. 

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